Homens que conversam com as estrelas

(Por Salatiel Correia)

Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1997, Cemitério São João Batista. Lá, não mais que 200 pessoas compareceram para prestar as últimas homenagens a uma personalidade cultuada pela sua inteligência, seja no mundo acadêmico, seja no mundo político, ao qual serviu sem se sentir muito à vontade. Falo de Mário Henrique Simonsen. Nosso personagem sentia-se mesmo liberto era no mundo acadêmico, especificamente na escola em que ele foi, por toda sua vida, professor e diretor da pós-graduação: a Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. A presença de poucas pessoas no enterro dele muito se deve por ser aquele 10 fevereiro um dia de pleno Carnaval.

Aluno brilhante do curso de engenharia civil da antiga Universidade do Brasil, professor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada do Rio de Janeiro, por onde passou o ex-ministro da Fazenda do governo do Presidente Ernesto Geisel e, também, ex-ministro do Planejamento durante parte do governo do Presidente João Batista Figueiredo, era tido, por todos que com ele trabalharam ou dele foram alunos, como o maior economista do Brasil. De chefe a admirador, o ex-ministro do governo Castelo Branco elogiava, enfaticamente, esse grande pensador. “Ele foi, certamente, o economista mais tecnicamente qualificado e melhor instrumentado do país”, relatou Campos.

O ex-professor da PUC do Rio, Doutor pela Universidade de Harvard e ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, talvez tenha explicitado, com grande exatidão, o nível da inteligência do professor Simonsen. Para ele, “Pessoas com esse nível de inteligência são raras, muito raras. Eles conversam com as estrelas”. Como conversavam com as estrelas gênios como Leonardo da Vinci, Shakespeare e uns poucos integrantes desse grupo seleto de pensadores.

Pude atestar a genialidade do saudoso professor Mário Henrique Simonsen, quando ele disponibilizou ao mercado o seu último livro: “Ensaios analíticos”, que publicou em pleno desenvolvimento da doença que o matou.

Trata-se de ensaios repletos de equações por todos os lados. Simonsen desenvolveu-as para explicar o som das notas musicais de obras clássicas. Aliás, muito além das ciências econômicas, o quase eterno professor da Fundação Getúlio Vargas dominava a arte do barroco mineiro, literatura, política, enfim: Mário Henrique Simonsen conversava com as estrelas. Posto isso, parto agora para um depoimento pessoal.

Nos anos da minha formação profissional, tive o privilégio de ter como mestre, na cadeira mais difícil do curso de engenharia de telecomunicações, um grande educador, hoje, considerado e reconhecido como a maior autoridade no Brasil quando o assunto é o eletromagnetismo. Falo do Doutor José Antônio Justino Ribeiro.

“Eu diria que ele é hoje reconhecido nacionalmente e até internacionalmente.” – assim me disse um renomado professor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica a respeito do então mais brilhante aluno do doutoramento do ITA, em eletrônica.

Fui aluno do professor Justino há 44 anos. Dos subterrâneos da minha memória, lembro-me, como se hoje fosse, das complexas equações de Maxwell que ele, já naquela época, dominava. Mantenho vivas, nas minhas lembranças, suas primeiras inquietudes no tocante a um tipo de diodo que não existia no Brasil, mas que seria de grande utilidade no mestrado que ele já cursava em São José dos Campos. Chegamos, eu e meu colega e amigo, Edson Luís Curto, a acompanhá-lo em uma viagem (ao ITA) que deve ter feito pelo menos umas duzentas vezes nos tempos em que cursava o mestrado e, depois, o doutorado: de Santa Rita a São José dos Campos. Só mesmo uma pessoa que ama o conhecimento teria fôlego para manter suas atividades de docente na Escola Técnica de Eletrônica, no Instituto Nacional das Telecomunicações, na Universidade Federal de Itajubá e cursar a pesada pós-graduação do ITA. Tudo isso foi realizado por um aluno que fez história na pós-graduação, na mais rigorosa instituição de ensino do país, como um de seus mais brilhantes alunos.

Preocupado em deixar um legado para as próximas gerações, o professor Justino produziu livros de teoria eletromagnética que se tornaram referência em inúmeras escolas deste imenso país, continente, chamado Brasil.

Avesso à burocracia que, certamente, o impediria de ser o profissional reconhecido que é no Brasil, Doutor Justino jamais quis ser o que poderia ter sido: diretor da Escola Técnica de Eletrônica, do Inatel ou, até mesmo, da Universidade Federal de Itajubá.

Nós, da turma de 1981 do Inatel, no nosso encontro de 40 anos de formados, ficamos felizes com a homenagem que o Polo de Tecnologia fez, em vida, a esse grande pesquisador: uma das salas dos moderníssimos laboratórios do Polo Tecnológico de São José dos Campos recebeu o nome de quem se fez respeitar nacionalmente como um dos mais reconhecidos pesquisadores deste país. Um profissional completo que, nos seus 50 anos de docência, ajudou a educar os mais de 20 mil alunos e a orientar dezenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado.

No nosso encontro, Doutor Justino foi convidado pela turma a dar a aula da saudade. Ele, no alto da sabedoria dos seus 76 anos, subiu no tablado do Auditório Aureliano Chaves e começou a deduzir as equações de Maxwell. Lá estava eu, nos meus 64 anos de vida, relembrando aquilo que eu já conhecia há mais de 40 anos: um educador que ia subindo o tom das emoções à medida que portava à lousa um mundaréu de equações de alguém, assim como o saudoso Mário Henrique Simonsen conversava com as estrelas.

Foi muito emocionante! Lá estávamos nós, junto com as duas secretárias de nossa turma, Elizabeth e Janete, relembrando um passado que se fez presente. Pouco tempo depois, no nosso churrasco de confraternização, também estava o professor Justino recebendo o carinho de seus alunos. Naquele momento, me veio à memória mais uma doce lembrança de um passado de 45 anos: a de ver a esposa do professor levando as crianças para brincar na quadra da escola. Ela foi o esteio da criação dos filhos. Aproximei-me dela, dei-lhe um afetuoso abraço e proferi a seguinte frase vinda do fundo do meu coração: “querida dona Terezília, por trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher. Sem a senhora, nosso amado mestre não teria chegado onde chegou: no nível de conversar com as estrelas”. Ela sorriu e caminhou alguns passos para estar ao lado do companheiro de toda uma vida. Naquele momento, passados quase meio século, senti que o doutor José Justino Ribeiro jamais seria, para mim e para todos meus colegas, um retrato na parede.

(Salatiel Soares Correia é Engenheiro, Bacharel em Administração de Empresas, Mestre em Energia)

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