(Por Bráulio Souza Vianna)
Sempre trabalhador e bem sucedido nos negócios, meu pai comprou a Fazenda das Palmeiras, mais próxima da cidade, e para lá nos mudamos.
– Alencarzinho, você está fazendo aniversário, ano que vem vai entrar pra escola. Está na hora de ter seu próprio cavalo. Assim ganhei Pinga-Fogo, no dia do meu aniversário de 6 anos. Alazão cereja, sua cor avermelhada me inspirou o nome. Também me inspirei num programa de entrevistas políticas do rádio que papai sempre escutava, com esse mesmo nome. Baixinho, mas esperto, muito manso, manso de cupim. A pouca altura era uma grande vantagem; conseguia entrar montado nele pela porta da frente do casarão centenário, atravessar a casa toda e sair pela cozinha, apavorando quem lá estivesse manobrando as panelas…
Arrumei um cocho pra ele debaixo da janela do meu quarto, e sempre que eu quisesse ele estava ali, pronto pra mim; era só pular a janela e montar nele para levar minha imaginação de menino aonde eu quisesse, feliz como só as crianças sabem ser.
Mais do que um cavalo, ele era meu companheiro para tudo. E um dia Pinga-Fogo iria, não colocar, mas apagar um incêndio, e salvar a minha pele, mas eu ainda não sabia disso…
Uma das professoras primárias da Escola Normal era a dona Alice Mendes, parente nossa. Quando fui matriculado, no início de 1931, a classe do primeiro ano estava lotada. Então, ela procurou minha mãe e fez uma proposta:
– Zica, para o Alencarzinho não ficar sem estudar, proponho o seguinte: tenho vaga na turma do segundo ano, você vai me ajudando, estudando com ele em casa as matérias do primeiro ano e o colocamos na sala do segundo. Também professora, sabendo da importância de não atrasar meus estudos, minha mãe concordou com a estratégia. E assim foi feito. O que elas não imaginavam, no entanto, foi a reação dos meus colegas de segundo ano. Eles ficaram furiosos comigo. Por que esse moleque está estudando com a gente no segundo ano sem ter feito o primeiro? Por que nós tivemos que fazer e ele não?
As animosidades começaram, e nem papai me levando e indo me buscar na escola adiantava; no recreio eles queriam me pegar para descontar a frustração de estarem se sentindo passados para trás. Eu tinha que resolver o problema, mas como? Assuntei, até que cheguei à solução.
Pai, posso ir pra escola no Pinga-Fogo? Posso levar os picuás de leite para entregar e, na volta, junto os bezerros no pastinho e já os deixo presos no curral para a ordenha do dia seguinte.
Papai sempre procurou nos dar responsabilidades desde muito novos, e achou que aumentaria minha confiança ir sozinho no meu cavalinho, afinal, eu era o filho mais velho.
Naquele dia, levantei mais cedo do que o de costume, arriei o Pinga-Fogo com o melhor baixeiro, coloquei nele o arreio e a rédea vermelha novos que ganhei de Natal, e deitamos cabelo pela estrada afora. Chegamos um pouco antes da aula. O vizinho da escola tinha um quintal imenso, cheio de jabuticabas cujos pés ele alugava por hora. Acertei com ele para deixar o Pinga-Fogo amarrado na sombra de uma dessas jabuticabeiras, e inté levei o cochinho dele pra lá, umas espigas de milho no emborná, sombra e água fresca e ele estava bem acomodado. Tinha só um colega que não implicava comigo, o João Adami. Por dádiva do destino, continuamos sendo colegas até entrar para a faculdade. Um grande amigo. Esse foi o primeiro teste da nossa amizade:
– João, eu vim de cavalo. Fala pra turma que quem quiser andar nele no intervalo eu deixo.
Como a grande maioria morava na cidade, a oportunidade de andar a cavalo lhes fez brilhar os olhos; mesmo os dos valentões. Mas havia uma regra: um só por dia. Fiz assim porque quem quisesse andar teria que esperar na fila, por ordem da chamada, e enquanto não chegasse a sua vez, não iria mais implicar comigo. Dito e feito, a partir daquele dia conquistei a amizade de todos da sala. Pinga-Fogo me salvou da fogueira!
(Extraído da obra “Tilenka, 100 mais delongas”, de Bráulio Souza Vianna)