O imigrante português que se tornou um dos homens mais poderosos de Minas, no século XIX

    Você já ouviu falar em Manoel Carneiro Santiago? Imigrante português, tropeiro, grande proprietário rural e patriarca de uma das famílias mais influentes da região, ele deixou marcas profundas nas vilas que dariam origem ao nosso território. Sua trajetória atravessa séculos, envolve alianças familiares decisivas e revela tanto a força quanto as contradições da sociedade mineira do século XIX.

    (Por Carlos Romero Carneiro)

    A história de Manoel Carneiro Santiago se entrelaça com a própria formação do Sul de Minas e dá origem a muitos descendentes locais. Filho de uma linhagem de militares e comerciantes portugueses, ele atravessou o Atlântico ainda jovem e, ao longo de mais de meio século, tornou-se um dos maiores proprietários rurais, tropeiros e negociantes da região, deixando uma marca profunda nas vilas de Baependi, Cristina, Carmo de Minas, Lambari e Pedra Branca. Seus descendentes fazem parte da família carneiro que, no século XX, participaria da vida social e política santa-ritense.

    De Portugal ao coração das Minas Gerais
    O Alferes Manoel Carneiro Santiago nasceu por volta de 1776, em Cinfães, distrito de Viseu, no norte de Portugal, filho do Capitão Francisco da Costa Carneiro Ribeiro e de Cruz Maria de Jesus. A família já mantinha laços com o Brasil: seu avô vivera no Arraial do Tijuco (hoje Diamantina), atuando como comerciante e garimpeiro.

    Aos 20 e poucos anos, Manoel desembarcou no Brasil, integrando o fluxo de portugueses que, nas últimas décadas do século XVIII, ocuparam as áreas fronteiriças da capitania de Minas. Atraídos pela fertilidade das terras e pela abertura de sesmarias, ele e os pais se estabeleceram na região então conhecida como Sertão da Pedra Branca, território de mata densa e de ocupação indígena da etnia Puri.

    Oratório que pertenceu a Manoel Carneiro Santiago.

    Casamento e alianças familiares: o tronco de uma grande linhagem
    Em 27 de novembro de 1799, Manoel casou-se com Ana Francisca de Freitas, filha do influente Capitão João Fernandes da Silva. A cerimônia, celebrada na própria casa do capitão, consolidou uma das principais alianças familiares das margens do Rio Verde. O casal teve oito filhos documentados, que se distribuíram entre Baependi, Cristina e arredores. Uma de suas filhas, Joaquina Maria Carneiro, iria se casar com Inácio Joaquim Ribeiro. Deste casal, nasceria Joaquim Inácio Ribeiro, que se tornaria o homem mais influente de Santa Rita do Sapucaí, na segunda metade do século XIX. A emancipação e desenvolvimento de Santa Rita do Sapucaí, a partir do final do século XIX, passa por ele. Vale dizer que o patriarca da família Moreira, Antônio Moreira da Costa, também foi criado pelos “Carneiro Santiago” e casou-se com uma neta de Manoel, irmã de Joaquim Inácio. Outro filho do Alferes, chamado José Carneiro Santiago, daria origem a boa parte dos “Carneiro” que vivem hoje em Santa Rita do Sapucaí. Diversas outras famílias com raízes do sul de Minas também vieram deste mesmo tronco estendido por seis gerações e 250 anos, desde o nascimento de Manoel.
    O Censo de Carmo de Minas de 1832 localiza Manoel e sua esposa, Ana Francisca, no Fogo nº 450, então com 50 e 56 anos, respectivamente, vivendo com parte dos filhos. Isso confirma a sua presença simultânea em vários núcleos rurais da região, já que era proprietário de muitas terras.

    Lavoura, tropeirismo e escravagismo
    Instalado na então Vila de Santa Maria do Baependi, Manoel Carneiro Santiago construiu patrimônio a partir de três bases:

    • Agricultura e criação de gado: cultivava lavouras de abastecimento e comandava várias fazendas produtivas;
    • Tropas de muares: era tropeiro experiente, conduzindo cargas e mercadorias entre Minas, Rio de Janeiro e São Paulo.
    • Comércio de fumo e escravizados: a partir da década de 1820, ampliou sua atuação no comércio de tabaco e se tornou um grande proprietário de escravizados. Seu inventário final registra 256 pessoas em regime de escravidão, número que, embora retrate a realidade econômica da época, era exorbitante e representa a face mais cruel e dolorosa da estrutura produtiva mineira, no século XIX.

    O inventário de 1845
    O inventário de Ana Francisca de Freitas, organizado por Manoel em 1845, é um dos documentos mais detalhados sobre a economia rural oitocentista da região. O total da herança alcançou 557:983$376 réis, uma das maiores fortunas da região. A lista de bens inclui propriedades rurais gigantescas que somadas ultrapassavam 3000 alqueires (equivalente a metade do território rural e urbano de Santa Rita do Sapucaí), entre elas:
    Fazenda da Pedra Branca (722 alqueires);
    Fazenda do Caconde (760 alqueires);
    Fazenda do Sertãozinho (320 alqueires);
    Fazenda do Lambari (235,5 alqueires);
    Fazenda do Pitangal;
    Grota da Divisa;
    Grota do Assude;
    Grota do Serpa;
    Grota do Pinhalzinho;
    Propriedades em Carmo, Lambari, Espírito Santo e Água Limpa. Também dispunha de estruturas produtivas completas, como: casas de tropa; senzalas; paióis; moinhos; monjolos; casas urbanas; áreas de produção agrícola e gado.

    Manoel Carneiro Santiago era dono de centenas de cabeças entre bois, vacas, novilhas, touros e gado de trabalho. Cada herdeiro recebeu 2:400$000 réis ao casar, prova do poder econômico da família naqueles tempos.

    Morte do patriarca
    A necrologia publicada em Villa Christina, possivelmente a mais valiosa peça textual sobre Manoel, o descreve assim: “Acaba de fallecer nesta villa, com 80 annos de idade, o prestante cidadão Manoel Carneiro Santiago, o mais antigo habitante deste logar, onde residia ha mais de meio seculo, e incontestavelmente tambem o mais respeitavel que entre nós existia, porque além de ser o tronco de uma grande e estimável familia, recommendava-se por sua fortuna, seu raro trabalho, sua sobriedade e modestia, e sem sombra de affeição affavel que jamais se deixou dominar pelas grandezas da terra, não distinguindo o rico do pobre, o grande do pequeno, quando com elles de continuo tratava.” Note que o fato dele ser proprietário de centenas de escravizados não era considerado um fator desabonador para a sociedade da época. Aquela conduta era tida como normal.

    Fundador, patriarca e agente histórico

    A vida do Alferes Manoel Carneiro Santiago sintetiza a formação da sociedade rural mineira do século XIX: imigração portuguesa, fronteira agrícola e sesmarias; agricultura, tropeirismo e comércio; escravidão como base econômica; formação de vasta família regional; acúmulo de terras e influência política; atuação ativa na vida religiosa e comunitária. Seu nome está ligado às origens de: Cristina (Villa Christina);
    Baependi; Carmo de Minas; Água Limpa/ Lambari e Pedra Branca. Sua descendência integra dezenas de famílias tradicionais do Sul de Minas, dentre elas de Santa Rita do Sapucaí.

    Manoel Carneiro Santiago foi um personagem estruturante da ocupação do Sul das Minas, um imigrante que ascendeu ao topo da elite rural, um homem de relações amplas, de intensa atividade religiosa, de fortuna expressiva e cuja trajetória permite compreender aspectos essenciais da história do Brasil oitocentista, incluindo suas sombras. Sua vida, preservada em documentos, oferece o retrato de uma época e de um território em formação.

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