Toninho tem 56 anos, nasceu em Casca Dura, Rio de Janeiro, mas vive em Santa Rita, desde os 3 anos. Considerado uma lenda local, tem como paixões a pesca e a mecânica. Como bom pescador, suas histórias são espetaculares e cheias de reviravoltas. Durante a entrevista, percebemos que aquele homem simples e humilde, revelava uma grande experiência de vida e uma bondade fora do comum. Conheça agora um pouco da vida de Toninho: uma das figuras mais autênticas da cidade.
Todo pescador tem histórias. Conte-nos alguma.
Uma vez fui pescar com dois amigos: um era o Vandinho e o outro era o Paulino, já falecido. Naquele dia, não tínhamos pescado nada e o Paulino arrumou uma desculpa para nos afastarmos dele. Ele disse: “Vão ali pegar uma lenha pra gente fazer almoço”. Quando voltamos, tinha uma linguiça assada no espeto. Só depois nós que soubemos que era uma cobra que ele tinha assado! O Vandinho sentiu mal e tivemos que trazê-lo para casa. Muito tempo depois, ele nos contou que a cobra que tinha preparado era, simplesmente, uma cascavel!
O Senhor presenciou a enchente de 2000?
A enchente foi uma coisa lamentável. Nesse episódio, vi muitas coisas tristes, mas muitas coisas bonitas também. Com a enchente, aprendi a ser mais amoroso com as pessoas. Antes, não me importava muito. Era mais desligado. O que mais me chamou a atenção foi quando eu vi uma mu-lher de 70 anos, já velhinha e doente, pulando na enchente para salvar um gatinho. Aquilo me comoveu demais.
Você ajudou a socorrer as vítimas da velha ponte?
Eu estava no Bar do Peixe com o Vandinho. Foi num domingo. Umas três e pouco, ouvimos o primeiro estalo da ponte. Não esqueço essa imagem até hoje. Todo mundo dentro da água, naquele desespero. O Vandinho pulou na água e ajudou a socorrer muita gente. Já eu, não sei nadar até hoje. Naquela tragédia, quase todos que morreram eram amigos meus, principalmente o Vitinho. Não sei se foi coisa do destino, mas tirei todos os meus companheiros de lá.
Como foi sua vinda de táxi do Rio de Janeiro?
Fui ao Rio de Janeiro, na casa de uma prima, fiquei uns 15 dias, mas decidi vir embora. O problema é que eu estava sem dinheiro. Como do lado da casa dela tinha um ponto de táxi, eu tive uma ideia. Cheguei lá e falei: “Eu sou um grande fazendeiro do Sul de Minas, vim negociar um apartamento e tenho que voltar para pegar o dinheiro. Como não mexo com banco e nem com cheque, tenho que viajar, imediatamente, e quero que você me leve!” O homem ficou desconfiado, mas consegui convencê-lo. O rapaz, às vezes, perguntava: “Então você é bem de vida?” E eu respondia: “Aúúúú! Sou bem de vida demais!” Quando chegamos aqui, meus amigos fizeram uma vaquinha pra pagar o taxista!
E na profissão de mecânico? Tem alguma história?
Eu tenho um amigo conhecido como Morfino. Seu nome verdadeiro é Roberto. Uma vez, fomos tirar a caixa de câmbio de um Chevrolet, lá na oficina. Era uma peça pesada, devia ter uns 80 quilos. Nós precisávamos remover o assoalho, pra poder tirar o câmbio. Ele, muito inteligente, amarrou uma ponta da corda no câmbio e a outra ponta no pescoço. Quando puxei a caixa por baixo, ele sentou a cara no painel do caminhão e perdeu tudo que era dente! Até hoje o apelido dele é “Morfino” por causa disso.
O senhor gosta de um carteado?
Eu gosto muito de baralho. Jogo truco, tranca, caixeta… Só não gosto de vinte e um. Uma vez, estava jogando na casa de um colega, apostando dinheiro. Naquela altura, já tinha perdido tudo. Quase um salário inteiro já tinha acabado. Quando já não havia mais nada, resolvi ir embora. No caminho, achei 2 Reais na rua e voltei. Por incrível que pareça, recuperei tudo o que eu perdi e ainda ganhei mais um bom dinheiro! Tudo isso com dois Reais!
E como eram os seus tempos de escola?
Eu passei por muitas escolas. Estudei no grupão, no colégio, no Sanico. Na verdade, passei por todas elas! Eu estudava uns dois anos em uma, era expulso, mudava pra outra, era expulso de novo… Eu era muito brigão, muito bravo. Naquela época, o Hildeu Garcia era o moleque mais enjoado da escola. Ele levava aquelas merendas boas e eu acabei arranjando um jeito de tomar dele. Todo dia, dava um couro nele pra comer o lanche. Até hoje ele brinca comigo por causa disso. Quando eu entrava na escola, a professora já falava: “Chegou o enguiço!” Hoje em dia , aposentei o ringue. A gente tem que acalmar, né?
O Senhor era amigo do Dito Cutuba?
O Cutuba foi um grande amigo. Para mim, foi como um pai. Com o Dito, aprendi muitas coisas. Aprendi a pescar, a conhecer remédios no mato e a ser humilde. Apesar dele não ter estudos, era uma pessoa encantadora. Se você conversasse com ele uma hora, já ficava amigo a vida inteira. Ele viveu muitos anos no Amazonas, no meio dos índios, então falava o Tupi, fluentemente. De caça, ele sabia tudo. Sabia o que era bom pra comer e o que não era. Era uma pessoa que não gostava de mentiras. O que tinha que falar, falava. O Dito morou muito tempo em uma palhoça à beira do Rio. Na casa dele não tinha parede, nem nada. Eu passava de barco em frente e ficávamos conversando. Era uma pessoa que estava à frente do seu tempo e sabia falar sobre tudo. Já vi muita gente instruída chegar para conversar e sair dizendo que ele era fora do normal. Seu cabelo era muito comprido, com um cipó amarrado na testa. Tinha cara de índio mesmo. A comida que ele fazia nunca levava sal, mas tinha um sabor delicioso! Não sei qual era o seu segredo. O Paulino sempre falava: “Meus Deus, o que será que o Dito faz pro peixe ficar tão bom? Tem que ter alguma coisa.” Ele preparava a carne na sua frente e você não via ele usando sal. Quando perguntava o que era, ele respondia: “Isso é uma coisa que eu aprendi com os índios.” Remédios na-turais ele também conhecia. Eu bebia muito e quando estava passando mal, chegava para ele e dizia: “Dito, acho que eu carquei meio demais!” Ele saía pro mato e voltava com umas plantas na mão que ninguém não sabia o que era. Você tomava o remédio e, dez minutos depois, estava ótimo! Outra coisa que me lembro é que ele era o maior nadador que existia. O povo fala desse tal de Michael Phelps… o Dito era além da imaginação! Ele pulava de cima da ponte velha com as mãos e os pés amarrados! Quando atravessava do outro lado da ponte, você já não via ele. O povo achava que tinha morrido. Ele só ia aparecer de novo 300 metros rio abaixo. Era fora de série esse pajé! Ele gostava que o chamasse de pajé. De Cutuba ele não gostava que chamasse, não. Ele foi de tudo. Foi Toureiro, foi palhaço de circo. A mãe dele lia a sorte. Uma vez, ela jogou as cartas e previu que ele ia morrer sozinho, no meio do mato e só seria encontrado dois dias depois. Tudo o que ela falou aconteceu.
Como é morar na Rua do Queima?
A rua do Queima é fantástica. Todo mundo é seu amigo e o ajuda. Na verdade, tem alguns que, além de não ajudar, atrapalham, mas a maioria dos vizinhos são muito bons. Gosto muito de morar aqui. Só pretendo sair depois de morto.
Como anda a situação do rio Sapucaí, hoje em dia?
Está quase morto. Antes tinha muito peixe, agora não tem mais nada. Uma vez, pesquei um dourado de 17 quilos. O peixe era maior do que eu! Hoje tem muita rede de esgoto. Você abre o peixe e percebe que tem bicho dentro. Se você pescar um pouco acima da rede de esgoto dá para perceber que até o gosto é outro. Eu acho que deveriam tratar a água que a cidade despeja nos rios. Da forma como está indo, vai acabar. Bagre por exemplo, era um peixe que tinha demais, até irritava a gente. Hoje não existe mais. Tinha um peixe chamado Quitéria que eu nunca mais vi. Tinha Tabarana também. Nessa época, era difícil voltar pra casa e não trazer um ou dois Dourados. Eu vivia de pesca! A retificação do rio foi uma das causas. O que segura o peixe são as curvas. Depois da retificação, o rio ficou mais raso e as árvores à beira do rio começaram a cair. O Paulino sempre falava: “Depois que mexeram nas veias da Terra, o sangue foi esgotado”. É a mais pura verdade. Hoje em dia, tem lugares em que não é possível navegar. É preciso descer do barco e arrastar. Isso nunca aconteceu antes.