Por Ivon Luiz Pinto
“Viva o ressuscitado! Eu já andava compondo um “Adonais” para o extinto juiz eletricista de Santa Rita do Sapucaí!” (Monteiro Lobato)
No final de 1909, chegou a Santa Rita do Sapucaí um homem magro que tinha sido nomeado para Juiz Municipal, cargo que ocupou até 1918. Seu nome era José Godofredo de Moura Rangel ou, simplesmente, Godofredo Rangel. Nascido em Três Corações em 21 de novembro de 1884, era primo do Dr. Omar Franqueira. Sua família mudou-se para Silvestre Ferraz, atual Carmo de Minas e, após a morte do pai, quando tinha ainda 12 anos, foi morar em São Paulo com a sua irmã, Lavínia Paraguassu. Em 1902, ingressou na Faculdade de Direito da USP, onde bacharelou-se em 1906. Para custear os estudos, empregou-se como auxiliar de escrivão na Subdelegacia do Posto Policial do Brás e foi nesse local que conheceu e fez amizade com Ricardo Gonçalves, que era repórter policial do jornal Correio Paulistano. Ao ser transferido para o Posto Policial de Belenzinho, foi morar num chalé na Rua 21 de Abril. A rua era sem calçamento e o chalé ficava no centro de uma chácara com laranjeiras, ameixeiras e um pé de romã. Quando Ricardo foi visitar o amigo, ficou deslumbrado com a visão que tinha da sacada e disse: “Mas é uma torre, Rangel! Veja que amplidão de vista que se descortina! Uma torre! Um MINARETE! E você um muezim”. O nome se tornou rótulo e a república do Minarete se tornou marco da vida literária. Foi lá que Rangel conheceu Monteiro Lobato numa das reuniões que fazia com a turma do Cenáculo. Esse conhecimento selou uma amizade que se desenvolveria por toda a vida, gerando uma correspondência de mais de 40 anos, registrada nos dois volumes de “A Barca de Gleyre”, de Lobato. A amizade era tão profunda que os dois fizeram um pacto de que, quem morresse primeiro, viria visitar o outro e lhe contar como era o lado de lá. Como tinham receio de que pudessem ser iludidos por algum espertalhão, combinaram uma senha. Quem morresse deveria dizer a senha para que o outro tivesse a certeza de que estaria falando com a alma certa. Lobato morreu primeiro e perguntaram a Rangel porque razão ele não falou com a alma do amigo. Ele respondeu: “Esqueci a senha!” Bem mais tarde surgiu, em Pindamonhangaba, por influência de Lobato, o jornal Minarete. A República do Minarete passou a receber a turma do Cenáculo, que, no Café Guarani, onde se reuniam, eram classificados de “cainçalha”, onde cada componente recebia o nome de um cão. Rangel era o cachorro caipira e Lobato o buldogue.
Em 1906, bacharelou-se em Direito pela USP e, no mesmo ano, casou-se com Bárbara Pinto de Andrade, moça que conhecera em Caldas, Minas Gerais. Com ela, teve quatro filhos: Nello, Caio, Túlio e Duse.
Quando mudou-se para Santa Rita do Sapucaí, os vencimentos de um Juiz Municipal eram pequenos para cobrir as despesas da família e Rangel procurou outros meios de suplementar o orçamento. Conseguiu o cargo de tesoureiro da “Companhia Sul Mineira de Eletricidade”, indo residir numa casa de propriedade dessa Companhia, no local que depois se transformaria na Escola Nossa Senhora de Fátima. Por este motivo, Lobato chamava Rangel de “Eletricista do Sapucaí”. Em 1915, em carta de Santos, Monteiro Lobato, carinhosamente, disse: “Viva o ressuscitado! Eu já andava compondo um “Adonais” para o extinto juiz e eletricista de Santa Rita do Sapucaí!”
Frequentemente, Lobato demonstrava inveja do amigo por morar numa cidade bucólica ao passo que o criticava pelo pessimismo: “Morar em Santa Rita… imagino que seja um tonel de Diógenes, um tonel de paz perpétua, num mundo feroz e em luta permanente. Essa Santa Rita em que moras e onde dás a A o que é de A e a B o que é de B. Como és feliz – e mesmo assim a neurastenia te engrifa! Que mais quererá do mundo, Rangel o Incontentável?“ De Caçapava, em 1917, um ano antes de Rangel deixar esta cidade, Lobato escreveu: “Faço tal propaganda de você que todo mundo em São Paulo está de olho em Santa Rita do Sapucaí. Isso aí nem é mais cidadinha mineira: é aquela sarça ardente da Bíblia que Moisés olhava de olho arregalado! Jeovah Shammah!”
Aconselhando o amigo, Lobato revelou profunda preocupação com a identidade interior da pessoa: “Você me pede um conselho e, atrevidamente, eu dou o Grande Conselho: seja você mesmo porque, ou somos nós mesmos, ou não somos coisa nenhuma. E para ser si mesmo é preciso um trabalho de mouro e uma vigilância incessante na defesa, porque tudo conspira para que sejamos meros números, carneiros de vários rebanhos – os rebanhos políticos, religiosos, estéticos. Há no mundo ódio à exceção – e ser si mesmo é ser exceção.”
Rangel assumiu, também, a cadeira de Português no Instituto Moderno de Educação e Ensino, na época conhecido como o “Colégio do Camargo”, pois seu diretor era o Prof. João de Camargo. Aqui, escreveu Soares Brandão Filho, no jornal Correio do Sul, de 2 de setembro de 1951: “Ele redigiu quilos de cartas para Lobato e ainda encontrava tempo para conversar com os amigos, que o admiravam bastante, principalmente o Pepedro, para cujo cinema redigia, em linguagem escorreita, programas com os enredos da Theda Bara, do William Farnum, da Regina Badet e de outros astros do celulóide. Em julho de 1917, escreve uma pequena gramática com o título de ‘Estudo Práctico de Português’, edição particular, feita pela Tipografia e Papelaria do Correio do Sul, prefaciada pelo Dr. Antonio Affonso de Morais. Já depois de ter ido embora desta cidade, em 1937, publica no jornal Correio do Sul, de 18 de maio, edição especial comemorativa de 25 anos, o conto ‘Os Besouros’, feito especialmente para o jornal e pouco mencionado na sua literatura. Este conto não consta em sua bibliografia, talvez por ter sido feito, especialmente, para o referido jornal.”
Em 1943, Lobato lhe escreveu: “Estou datilografando minhas cartas, e espero que estejas fazendo o mesmo”. Godofredo Rangel deixou em testamento que suas cartas jamais deveriam ser publicadas. Por quê? Ninguém sabe.
Em Belo Horizonte, no dia 4 de Agosto de 1951, aos 66 anos, morreu o juiz eletricista de Santa Rita. Soares Brandão Filho, ex-aluno de Rangel no IMEE, registrou o seu carinho e admiração pelo escritor: “É interessante a manifestação da simpatia. A gente fica gostando de uma pessoa, muitas vezes, por uma coisa de nada. E essa predileção caminha conosco tempo além, sem esvaecimento. Godofredo Rangel, que a morte, as primeiras horas da tarde dum sábado belo-horizontino, carregou de mansinho, era uma dessas pessoas. Criatura boa de verdade e não porque morreu.”