Hoje quem paga sou eu

(Por Carlos Romero Carneiro)

A profissão de escriba, certa curiosidade e prazer em colecionar amigos me levaram a locais um tanto inusitados. Para sair da rotina e desvendar histórias espremidas entre o Vintém e a Capituva, conheci muita gente boa. Dos ambientes mais intrigantes, entretanto, o Bar do Dija figura entre os pontos de que guardo memórias mais diversas. Como o próprio dono diz, sou membro-fundador da casa e sinto certo orgulho disso. Sou do tempo em que o bar funcionava do outro lado da rua, na esquina do Zé da Silva, com três portas que subiam pelas manhãs para vender doces à criançada e baixavam às vinte e três, com boêmios sendo tocados para fora. Ali, fiz grandes amigos e até estava presente no dia em que Dija empreendeu um embate corporal com um bandido armado que quase lhe tirou a vida. O comerciante ficou tão traumatizado que bateu em retirada (para a outra esquina) e colocou uma porteira com interfone na entrada. Quando alguém toca a campainha, ele espia pela janela. Os amigos já cansaram de dizer que aquilo limita a entrada de novos frequeses, mas não tem acordo.

Conheci, naquele espaço, um coronel que havia sido habitué do Beco das Garrafas, um Marinheiro, um piloto de corridas, seresteiros, empresários, um policial dos tempos em que guardinha atendia às ocorrências de bicicleta e uma sorte de frequentadores ilustres e boêmios sem credenciais. As histórias sobre a cidade borbulham naquele espaço onde passado e presente dançam tango e samba-canção. De um velho policial, ouvi uma passagem ocorrida no tempo em que era proibido realizar prisões de arruaceiros dentro dos bares. Era preciso ficar na porta, esperar o sujeito dar sopa, agarrá-lo pelo colarinho e transportá-lo para o xadrez no cano de uma barra-forte. Ele contou que, quando engaiolou o homem, deu a ele um copo de laxante, abriu a cela e lavrou a sentença: “Corre pra não cagar!” Dizem que o sujeito chegou tão borrado em casa que largou o vício e virou pastor.

Em um quadro, bem no alto da parede que escora o balcão, Dija ostenta uma foto do dia em que apertou a mão do Papa João Paulo II. Ele havia acompanhado o Monsenhor José em uma viagem a Roma e teve a sorte de avistar Sua Santidade enquanto fazia hora pelos corredores da basílica.

Depois de mais de uma década em funcionamento, Dija viu seus frequentadores se renovarem. Alguns apitaram na curva, outros sumiram sem dar explicações e novos fregueses chegaram aos poucos. Vez ou outra, uma ovelha desgarrada retorna ao bar e é recebida por Adjair como um filho pródigo, ao som de “Hoje quem paga sou eu”.

Não raramente, acontecem encontros de empresas, jantares de casais e reuniões de família. Mas, não importa o que aconteça, haverá sempre uma mesa redonda no canto do recinto, com os membros permanentes, rodeados por dois ou três figuras que preferem se debruçar no balcão.

Ali se conversa de tudo, sempre com respeito e distância segura dos imbróglios ideológicos que separam comparsas em tempos de polarização. Na véspera das eleições para presidente, cheguei a ver um amigo com uma estrela vermelha no peito brindar com um homem enrolado no pavilhão nacional. Um desatento, que nunca tinha frequentado o recinto, criou caso com um deles e voltou para casa com um recado ao pé do ouvido: “Some que aqui não é o seu lugar…”

A última novidade do restaurante é uma televisão conectada ao Spotify e pilotada pelos membros da confraria. Ali toca de Nelson Ned a Tears For Fears com uma pausa para o coro em “Por que brigamos” de uma tal Diana que conheci entre uma cerveja e outra. Enquanto Dija prepara o ossobuco, camarão ou joelho de porco, a clientela se esbalda com uma prosa em que as pesquisas no Google não são bem-vindas para dar emoção às mentiras. Quase todos concordam que, depois que inventaram o smartphone, acabaram os absurdos sem comprovação que deixavam as noites muito mais divertidas. Tudo bem que eu já presenciei um episódio em que um sujeito correu em casa e trouxe um fascículo da Barsa para comprovar a sua teoria, mas isso aconteceu há muito tempo e nem foi no bar do Adjair. Sob o pé direito de quatro metros, histórias ainda fluem naquele prédio de paredes grossas, ornamentado por imagens sacras, sacas de café e um papel amassado com o horário de funcionamento da casa. Os mais antigos vão ao freezer, abrem as garrafas e anotam nas comandas. Não se trata de atrevimento, mas é para dar refresco ao homem que insiste em tocar o bar, quase sempre, sozinho. Este, no entanto, é o charme do estabelecimento encravado no alto do morro mais democrático de Santa Rita (sem trocadilhos). Quando suas portas se fecharem, muitas histórias deixarão de ser contadas e nenhum outro bar santa-ritense tocará Carlos Galhardo, Vicente Celestino e Trio Los Panchos com a mesma desenvoltura. E se isso acontecer um dia, aquelas pessoas irão se recolher em suas casas, mudarão os hábitos e terão a nítida sensação de que algo não está em seu lugar.

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