Quando terminei o velho curso científico em Caratinga, eu ainda não sabia, com muita exatidão, o que ia ser na vida. Ou melhor: não sabia que título de doutor ia oferecer ao meu pai. Também não estava muito certo se devia ir para o Rio de Janeiro ou para Belo Horizonte, em busca do meu futuro. Havia feito o Tiro de Guerra na minha cidade e, dessa obrigação, já estava livre. Como os trilhos da Estrada Leopoldina começavam no centro do Rio de Janeiro e terminavam quase na porta da minha casa, tudo levava a crer que era só pegar minha malinha, ir com minha mãe até a porta e meu pai até o porto – ou melhor, à estação – e desembarcar na capital da república. Acontece que, naquele ano de 1951, com exata metade do Século XX começando, os heroicos aviões bimotores salvados da Grande Guerra – os durabilíssimos DC-3 -começaram a voar a um pequeno e precário aeroporto, um pouquinho mais distante da minha casa, mas com a capacidade de chegar muito mais depressa do que os trens da Leopoldina à outra capital, Belo Horizonte. Um pequeno fato que mudou a minha vida e o destino de uma comunidade inteira. Mudou tudo: hábitos, modas, costumes, influências, sonhos, tendências, projetos, escolhas, conceitos, tudo. O que sempre me levou a perguntar: que sutil movimento da Terra muda nossos rumos, altera a direção que não depende de nossas escolhas? Em que momento, por exemplo, uma vida não exatamente ligada à nossa, se torna, para nós, uma existência humana transformadora? Qual a possibilidade do voo de um avião guerreiro traçar novos ares para o destino comum de um grupo?
Quando vários contemporâneos meus, que viviam numa cidade pequena como era a Caratinga, voltados também de costas para Belo Horizonte – olhos mirando São Paulo, como nós mirávamos o Rio – decidiram que a capital mineira era seu destino, nós, juntos, descobrimos que alguém tinha movido as pedras do tabuleiro de nossas vidas.
Foi numa república de estudantes que nos encontramos para ficarmos amigos para o resto da vida: os meninos de Caratinga e os meninos de Santa Rita do Sapucaí. Voam os anjos que decidem nossos destinos.
No nosso caso, os alterados – no sentido contido neste texto – rapazes de Caratinga, nosso anjo alterador foi um avião. No caso dos protegidos da santa das causas impossíveis do rio Sapucaí, seu anjo mais plausível: para mim, quase uma visão. Quando descobri que o seu nome era Sinhá, imaginei uma doce velhinha velando por seus meninos. Só agora, quase no momento de escrever estas linhas, foi que descobri que ela era – para mim, hoje, passado dos setenta – uma menina iluminada. Depois de dar quase uma volta no nosso planeta, ela retornou à sua terra natal como uma iluminista de outros tempos, com uma visão de mundo e uma generosidade inigualáveis.
Por sorte, nosso grupo de Caratinga não era dos menos brilhantes – pelo menos, éramos muito espertos – mas o grupo de Santa Rita nos encantou pelo seu alto nível de conhecimento e informação. Eles estavam ali por meritória conquista. Tinham ganho, por seu talento, a bolsa de Dona Sinhá Moreira, uma de suas inúmeras iniciativas símbolo.
Nós os invejávamos por isso e sonhávamos que Caratinga também pudesse ter a sorte que a comunidade de onde eles vieram havia tido com a transformadora existência desta mulher extraordinária, cuja vida foi contada em livro. Gostei muito de ser o autor desta homenagem a essa lendária figura que marcou a minha vida. E sonho para que, em uma das comunidades de nosso estado, seu povo tenha a felicidade de ver nascer em sua terra um anjo da guarda assim, com consciência social, com desmedida generosidade e uma forma de crer que há um Deus que aponta os anjos que devem nos guiar.
(Extraído do prefácio da obra “Sinhá Moreira – uma mulher à frente de seu tempo”, de Lilian Fontes.