Como foi a vinda da família Raposo para Santa Rita do Sapucaí?
A família Raposo é muito pequena em Santa Rita e meu bisavô, conhecido como Zeca Raposo, veio com a missão de, como educador, ajudar a fundar as primeiras escolas da cidade. Ele chegou numa mesma época que o professor Castillo e atuou com o professor João de Camargo, nesse projeto educacional. Natural de Baependi, Zeca Raposo estudou no Rio de janeiro e era filho de um grande maestro, o Francisco Raposo Lima, conhecido como Sabiá Mineiro.
Por que ele tinha este apelido?
O apelido surgiu porque, por conta da posição das duas cidades e do eco, quando ele cantava em Baependi chegava a Caxambu! Consta no Almanaque Imperial que ele era um grande tenor e trabalhou na corte de Dom Pedro II. Com a abolição e depois com a Proclamação da República, ele retornou a Baependi e desenvolveu uma orquestra dentro da igreja e a Lira de Baependi. Suas composições, datadas dessa época, foram editadas e até saiu um livro sobre ele. A nossa raiz musical vem dali. A música sempre esteve enraizada na minha família, no lado materno, vinda da minha avó materna, Stelinha Raposo, filha dele.
Seu bisavô conheceu Nhá Chica?
Quando chegou a Baependi, tornou-se o amigo mais íntimo de Nhá Chica. A trajetória dele, inclusive, acabou ressuscitada por conta da história dela. Durante a beatificação de Nhá Chica, o papa Bento XVI alegou que precisavam ser levantados dados de pessoas que conviveram com ela. Foi então que descobriram que o famoso milagre do órgão aconteceu com ele. Na reinauguração do órgão, inclusive, fui convidado para reinaugurá-lo, tocando após a restauração. Paulo Coelho, devoto de Nhá Chica, foi um dos colaboradores na restauração do instrumento trazido pelo Maestro em um carro de bois.
Adendo: O milagre do órgão
Uma das histórias mais conhecidas em Baependi é sobre um órgão que Nhá Chica teria mandado comprar para a Igrejinha. Quando um maestro foi tocar, o instrumento não funcionou. Todos ficaram frustrados. Mas Nhá Chica teria dito que o órgão não estava estragado e que Nossa Senhora queria que ele tocasse em determinada sexta-feira, às três horas da tarde, hora da agonia do Senhor. Ao chegar tal sexta-feira, o povo ficou curioso e lotou a Igreja. O maestro, milagrosamente, conseguiu tocar e o instrumento funciona até hoje.
Conte-nos mais sobre a vinda de Zeca Raposo para Santa Rita.
Ele veio participar da fundação do Grupão (E. E. Dr. Delfim Moreira), que funcionava onde hoje é a Escolinha Nossa Senhora de Fátima e também da Escola Normal. Ele foi o primeiro diretor do Grupão. Junto com ele, veio uma de suas irmãs, mãe da Tereza Raposo, única neta viva do Maestro.
Ao se instalarem em Santa Rita, esta família fez amizades muito duradouras e se tornou muito querida. Um dos grandes amigos que meu bisavô fez foi Delfim Moreira que, ao ser eleito governador, pediu a ele que orientasse na criação do que é hoje a Secretaria de Educação.
Como a música está relacionada à sua família?
Todos os filhos do Zeca Raposo tocavam e cantavam alguma coisa. A minha avó cantava o dia inteiro e trabalhou com a Dona Lourdes Brigagão, na Igreja. A gente respirava música dentro de nossas casas. E nós respirávamos estas histórias do Maestro com todo aquele clima nostálgico. Era muito comum alguém chegar, abrir o piano e tocar… a presença dos tios e da minha avó sempre se relacionou à música.
Para você a música foi algo natural então…
Eu falo que eu não escolhi a música, foi ela quem me escolheu. A música me pegou, me grudou, me encaminhou e me deu emprego! Foi ela quem fez… Eu era um menino de 13 ou 14 anos, quando o Padre José com a Dona Rita Seda me convidaram para tocar na igreja com o apoio dos meus avós e da dona Lourdes Brigagão. Naquela idade, eu comecei a tocar harmônio na igreja! O início da minha trajetória se entrelaça com a Dona Stelinha Raposo, com a Lourdes e com o Padre José! Não tem uma vez que eu vá a Santa Rita e que não visite o Monsenhor porque ele foi um grande motivador das artes em minha vida e sempre me disse: “Eu rezo todos os dias por você!” Então forma-se um vínculo afetivo de uma dimensão que não dá para explicar!
Onde mais você tocava?
Também tocava piano na ETE! A dona Alicinha Baracat fazia os seus teatros, gincanas e eventos e me chamava! Ela também me valorizou, desde quando eu era criança e, até o fim de sua vida, me convidou para participar de tudo o que promoveu em Santa Rita.
Lembra de alguma passagem com a Alicinha?
A Alice Baracat era uma lutadora. Eu não sei como é que ela conseguia realizar tantas atividades, com tão poucos recursos. Eu tinha 15 anos quando ela fez uma peça de teatro na ETE sobre o Natal e me convidou. Ela me disse: “Preciso que você seja o Miqueias para anunciar a chegada do menino Jesus e depois entre para tocar piano!” E assim foi… fizeram uma roupa, me colocaram de turbante e Miqueias chegou com tudo na peça! Acontece que o espetáculo acabou, eu precisei entrar para tocar, só que esqueci de tirar a roupa! Ninguém entendeu nada quando Miqueias anunciou a vinda de Jesus e retornou no fim da peça para tocar piano! A Alice levou um susto quando viu! Foi a estreia de Miqueias como pianista!
Este foi o início da profissão de um músico que hoje tem carreira internacional?
Muito antes de construir uma profissão que me levou a uma carreira de reconhecimento internacional, minhas bases foram criadas neste ambiente. Hoje, estou credenciado em várias associações pelo mundo e tive a honra de ser relacionado entre os grandes músicos do Brasil pela Academia de Música, através do Comendador Roberto Trench… toda a minha paixão, entretanto, continua atrelada a esta terra e nas atividades culturais que produzimos na nossa época, de uma forma totalmente diferente, mas com os recursos que tínhamos. Não sei dizer se era melhor ou pior… mas foi diferente!
Você valoriza muito a memória, não é?
Nós somos produto das histórias. Se não houvesse passagens relacionadas à música em Santa Rita, provavelmente não haveria a minha própria trajetória! Vivemos, por outro lado, a responsabilidade de registrar todas essas passagens para que, daqui a 100 anos, as pessoas possam compreender a nossa trajetória. Pessoas como o Luiz Carlos Carneiro são importantíssimas! Com uma filmadora na mão, ele deixou um legado impressionante e fez algo que ninguém mais fez! Digo isso porque história é como um jogo. A gente conta, reconta, transmitimos o que ouvimos e o passado é reconstruído.
E quais são as suas impressões quando vê imagens antigas da cidade?
Eu fico impressionado com a beleza que foi a nossa terra! Tenho visto algumas fotos antigas e me encantado com a arquitetura, com as casas… fico impressionado de ver que uma cidade tão pequena possuía elementos que constituíam o que poderia existir de melhor! Através dos traços e da maneira de pensar em arquitetura, noto como as casas eram sólidas e bem construídas. Com esta transformação, o que sobram são as fotografias e descrições. Se não registrarmos este momento, perdemos a nossa referência de passado!
Você tem vindo à cidade?
Eu sempre estou em Santa Rita. Há uns três anos me foi dada uma responsabilidade alta demais e tive que fazer intensas viagens para fora do país que me impediram de reaparecer. Agora, Santa Rita é a minha casa! Que fique bem claro que sou um hóspede de São Paulo! Meu verdadeiro lar é em Santa Rita do Sapucaí! Eu tenho planos de voltar antes da aposentadoria, ficar perto dos amigos e cuidar dos meus pais. Em breve, estarei por aí!
Você é um grande admirador de Dona Lourdes Brigadão. Conte-nos sobre ela…
Dona Lourdes, aos 5 anos, começou a tocar harmônio, em Pouso Alegre. Sua mãe, Marieta Brigagão, foi a primeira mulher maestrina de lá a formar uma orquestra no Santuário dos Claretianos, ali atrás do Mercado. Dona Lourdes começou muito cedo, se desenvolveu muito na música e, já mocinha, foi a São Paulo para estudar no Conservatório. Pelas minhas pesquisas, só pode ter sido o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, que era onde os grandes compositores estavam. Soube que, quando ela tocou Noturno de Chopin, os avaliadores e a banca disseram: “Você não tem mais nada pra aprender, menina!” Eles sugeriram que ela passasse dois anos estudando “contraponto e fuga”, que é uma matéria muito importante dentro da música. Nós temos em Bach o grande mestre desta que é a forma mais genial de se pensar música. Porque é uma grande matemática. Quando ela apresentou seu trabalho à comissão julgadora foi a primeira da turma! Na volta para Santa Rita, começou a aplicar esta técnica em qualquer musiquinha que dessem para ela tocar na igreja! Qualquer música que caísse nas mãos dela virava uma coisa de outro mundo! Ainda a escuto tocar! Ainda tenho os acordes dela na minha cabeça!
Você também fala sobre Dona Tereza Vono…
Dona Tereza tinha um ouvido musical maravilhoso e um jeitinho muito simples de ser. Foi ela quem me contou que, na rua da pedra, havia um rapaz muito pobre e que tinha um ouvido fora do comum. Certa vez, ele foi a São Paulo por algum motivo e, passando numa loja de instrumentos, viu uma flauta e pediu para experimentá-la. Ele tocou tão maravilhosamente que o dono deu a flauta pra ele. Esta história, pra mim, é um grande enigma porque nunca ouvi mais ninguém contar sobre isso. Imagino que este rapaz devesse tocar na orquestra do Maestro Augusto Telles, dono de uma das histórias mais bonitas de nossa cidade! Ele criou a Tipografia Santa Rita para reproduzir suas próprias composições! Ele comprou uma máquina para imprimir música!
E o músico Vicente Vono?
Vicente Vono acabou levando a musicalidade da família para além de nossa cidade, mas a família toda sempre foi muito musical! Pouca gente sabe, mas a Escola de Eletrônica só existe porque ele era apaixonado por Sinhá Moreira. Vicente sempre foi louco por Dona Sinhá. Amigo íntimo de Juscelino, fizeram medicina juntos e foi ele quem conseguiu agendar a reunião que tornou possível a criação da ETE!
E como você tem encarado esta pandemia?
Ainda não temos noção da Pandemia. O trauma só vem depois que passa. Então, agora, estamos meio no embalo. Por outro lado, temos vivenciado a internet e a globalização de uma maneira fora do comum! Tem acontecido uma espécie de reeducação. Sempre foi um hábito das pessoas conversarem sem prestarem atenção no que o outro diz. Com a internet, se a gente não escutar o que o outro fala, fica difícil responder. Tenho notado que o rendimento das minhas aulas aumentou e que as propostas de calma e escuta melhoraram. Isso será algo que ficará como legado para sempre.