Sinto muito, Seu Zé

(Por Carlos Romero Carneiro)

No comecinho dos anos 90, o bar da vez estava localizado próximo à encruzilhada entre as ruas 13, do Gouveia e Joaquim Inácio. Era um tempo muito distante da internet, das redes sociais e aplicativos de encontros. A moçada era obrigada a sair de casa se quisesse ter contato com outras pessoas, namorar ou curtir um som. Em uma cidade com trinta e poucos mil habitantes, um volume considerável de jovens escolhiam o boteco da vez e a quadra ficava repleta de pessoas que, mais tarde, iriam se acotovelar para imitar os famosos passinhos criados por “Levi do Rap” e seus amigos, dentro da boate.

Todo mundo achava muito bacana aquele movimento nos finais de semana, mas depois de muito tempo, foi que eu me lembrei de um homem que vivia por ali e que detestava o barulho produzido em frente à sua casa, das oito da noite, até altas horas da madrugada.

Era um homem de baixa estatura, cabeça branca, roupas produzidas por alfaiate e que beirava uns setenta e poucos. Vivia com uma senhorinha, também muito baixa, que não tenho ideia se era a sua esposa ou irmã. Só sei que o quarteirão fica apinhado, com toda aquela gente falando alto, carros passando com o som nas alturas e o idoso ali, no meio daquela muvuca, sem ter a quem recorrer.

O sujeito saía no alpendre fechado por grades, berrava que queria dormir, ameaçava quem passasse por ali, mas as pessoas achavam graça, jogavam cerveja, esmurravam a porta de ferro de um comércio ao lado e imitavam a sua reação. Aquilo só fazia crescer a sua ira. Ele queria assistir televisão, dormir em paz ou relaxar no silêncio de sua minúscula morada mas, por azar, vivia bem ao lado do bar mais movimentado daqueles tempos. Em seu endereço, não habitava a paz que merecia.

Muitos anos depois, fiquei sabendo um pouco sobre a vida daquele senhorzinho. Ganhou fama ao ser surpreendido por um jogador profissional de sinuca que teria lhe tirado tudo o que carregava nos bolsos, durante uma aposta que parecia fácil. O tal jogador, que perdera as três primeiras partidas de lavada, era um apostador profissional que fazia das derrotas iniciais, parte do golpe.

Eu não faço ideia se aquele homenzinho que vivia ao lado do bar tinha filhos, se era casado, ou aposentado. Mas quando eu me lembrei daqueles tempos de juventude e visualizei o seu semblante triste, na porta de sua casa, me senti envergonhado por ter estado ali. Aquilo não aconteceu uma vez ou outra. Três vezes por semana, parte da população se encontrava. Eu me lembrei de sua face endurecida e frustrada com o desrespeito de todos nós (e até da própria comunidade que não o amparou) e aquilo me colocou pra baixo. Éramos muito jovens, vivíamos uma época em que as pessoas não tinham tanta noção, mas percebo que nos faltou discernimento e capacidade para nos colocarmos em seu lugar. Ninguém fez isso.

Muita coisa mudou, de lá para cá. Me parece que, hoje em dia, a justiça funciona bem melhor do que naqueles tempos, que as autoridades já não toleram abusos como aqueles e que as pessoas têm recebido um respaldo maior da polícia.

Imagino que, depois de três décadas, aquele casal não esteja mais vivo mas – ainda que muito atrasado – gostaria de pedir perdão a eles. Que toda aquela baderna que aprontamos em frente à sua casa, não tenha sido suficiente para destruir a sua experiência de vida, apesar de ter subtraído dezenas de noites de sono. Que aquele casal tenha conseguido ser feliz, apesar da nossa incapacidade de comoção. Sinto muito, Seu Zé.

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