Por Carlos Romero Carneiro
Quem viveu a infância entre as décadas de 1960 e 1980 em Santa Rita do Sapucaí guarda na memória a imagem inesquecível de um homem simples e sorridente, empurrando um carrinho cheio de cores, brinquedos e o irresistível cheiro de amendoim torrado. Era Sebastião Felipe — o Pica — personagem que marcou gerações inteiras e se tornou um símbolo da inocência de uma época.
Da infância humilde ao mestre da cuíca
Magro, esguio e sempre de bem com a vida, Pica passou os primeiros anos nas redondezas do Asilo. Casou-se jovem com Maria Eva e trabalhou como servente de pedreiro ao lado de Antônio Galdino. Apesar da rotina dura, encontrava tempo para os amigos — João Bento, Zé Pequeno, Benedito Humberto, Paulo Gabriel e Sebastião Justino — e para a música, sua grande paixão.
Nos bailes da Associação José do Patrocínio, era figura certa: animava as noites tocando bongô, pandeiro, chocalho e a cuíca mais afinada da cidade. Integrante da “Sambistas do Morro”, a primeira escola de samba santa-ritense, fez história nas noites de carnaval, levando ritmo e alegria à multidão.
Um talento que atravessou gerações
Da união com Maria Eva vieram nove filhos, entre eles dois que herdaram o dom musical do pai: Tonico, um dos maiores saxofonistas da região, e José Luiz, grande baterista da cidade. A casa da família Felipe era sempre cheia de som, risadas e, claro, o aroma de amendoim que um dia transformaria a vida do patriarca.
O nascimento do carrinho encantado
Já aposentado, depois de 40 anos na construção civil, Pica começou a torrar amendoim em casa para agradar a esposa e os filhos. O sucesso foi imediato. Incentivado por Maria Eva, decidiu vender alguns pacotinhos após a missa. A cesta voltou vazia e a ideia virou tradição. Empolgado, ele decidiu inovar. Comprou uma bicicleta e, com criatividade e habilidade, transformou-a em um carrinho único: substituiu a roda dianteira por duas menores, instalou direção de carro, freio de pé e uma cobertura para os dias de chuva. O toque final foi o painel envidraçado e os inúmeros penduricalhos — buzina, radinho de pilha, brinquedos e enfeites coloridos — que encantavam crianças e adultos.
Ícone da praça e da alegria
Por mais de quatro décadas, Pica fez da Praça da Matriz o seu palco. Lá, distribuía alegria, sorrisos e amendoim, mesmo para quem não tinha dinheiro. Sua generosidade era tão marcante quanto o som de sua cuíca ou o brilho do carrinho ornamentado.
Tonico recorda que duas das maiores emoções do pai foram o nascimento da primeira neta — quando chorou de felicidade — e as Bodas de Ouro com Maria Eva, ocasião em que, envergonhado, atendeu ao pedido do Monsenhor José e beijou a esposa diante do altar.
Despedida de um símbolo da cidade
Sebastião Felipe faleceu aos 82 anos, torrando o amendoim que trouxera de Piranguinho. Partiu como viveu: trabalhando, sorrindo e espalhando doçura. Sua ausência deixou um vazio na praça e no coração dos santa-ritenses, mas seu legado permanece.
Hoje, o lendário carrinho integra o acervo permanente do Museu Histórico Delfim Moreira, onde emociona visitantes e reaviva lembranças de um tempo em que a simplicidade bastava para fazer feliz. Rever aquele carrinho é como voltar à infância — às risadas, ao barulho da cuíca e ao cheiro do amendoim torrado que perfumava a praça.