Os pretos do casarão

(Por Cyro de Luna Dias)

Quando nasci, fazia um quarto de século que a escravidão fora abolida no Brasil pela Princesa Isabel, regente do trono. Conheci, no casarão da praça, alguns ex-escravos, já livres antes do ano da Abolição (1888). Braz, negro alto e robusto, que vi velho e aposentado, mas fiel aos descendentes de Antônio Paulino, que o adquirira no Rio de Janeiro. Benedito, ex-tocador de trompa que teve alforria em 1886 e que trabalhou mediante salário que recebeu até à sua morte, com mais de cem anos de idade, tendo se casado quatro vezes e sendo a sua última esposa Sá Augusta, com menos da metade da idade dele. Nas bodas, ele tinha setenta anos e ela ainda não completara trinta.

Lembro-me de Sá Augusta, uma negra fina que só saía de casa com sapatos de salto alto e bolsa que levava elegante entre o braço e o quadril, como um oficial britânico que leva o seu bastão de comando. Matriculava regularmente os filhos na escola – que eram financiados em roupas, livros, cadernos e lápis por meu pai. Uma das filhas dela, Lidinha, escrevia versos. Eu, pequeno, meio selvagem, correndo as várzeas da chácara do meu pai, onde Sô Benedito tinha recebido por Sá Augusta, com muita finura cadeira de morada, ao chegar na modesta e limpa casa. Eu deixava fora da porta os meus sapatos pois, embora o chão da casa fosse de terra batida, era escrupulosamente liso.

Sá Augusta ia aos domingos ao casarão da praça. Batia na porta e só entrava quando convidada por alguém da casa, e ia cumprimentar mamãe, equilibrando-se nos altos sapatos. Sô Benedito entrava pela porta da cozinha, pois detestava sapatos e lavava os pés na torneira do tanque do terreiro. Fumava cachimbo, que trazia sempre pendurado na boca, e adorava cachaça. Como meus pais se recusavam dar-lhe mais uns trocados para a pinga, recorria a mim para pagar-lhe meio copo da bebida. Gostava de vê-lo no balcão do bar, com o dinheiro que lhe dava da minha mesada. Pedia a cachaça e, atentamente, ouvia o gorgolejar do líquido até a altura desejada; batia o pito na palma da mão despejando cinza e brasa que levava até a sarjeta, enquanto a cachaça descansava sobre o balcão. Guardava o pito no bolso, pegava o copo, examinava o colar de bolhas em torno do seu interior, mirava-o contra a luz e virava na garganta, de uma só vez, todo o conteúdo. Feliz, depunha delicadamente a vasilha e punha-se a picar fumo, que debulhava na mão esquerda.

Eu achava aquilo tão bonito que, um dia, quando a minha família visitava a prima Ordália, na venda do senhor Brandão, eu, com cerca de onze anos, resolvi experimentar. O proprietário da casa comercial e esposa faziam sala para a mamãe. Coloquei um níquel sobre o balcão e falei para o jovem caixeiro: bota dois dedos de pinga aí. O rapaz obedeceu, afinal eu era filho do Cássia, que seus patrões tanto estimavam e a bebida poderia ser para outrem. Imitei Sô Benedito: vi o colarzinho de bolhas no líquido e virei na goela. Foi como se tivesse engolido um vulcão; do estômago, como lava flamejando, o calor subiu para a cabeça, os olhos me embaciaram por lágrimas e perdi a respiração tolhida pelos vapores da forte bebida. Caboclos que me observaram, acudiram, batendo nas minhas costas, invocando São Brás, padroeiro dos engasgados, enquanto eu me contorcia. Seu Brandão veio esbravejando com o pobre e inocente caixeiro e me levou para dentro da casa, onde mamãe conversava com Dona Ordália. Ela correu para buscar um copo de leite e fez a bênção de São Brás, traçando com o polegar uma cruz na minha garganta, a me observar, sem dizer nada. Pouco tempo antes, Sô Manezinho Maia, jardineiro da praça, já tinha me levado para casa, amarelo e com ânsias de vômito, por conta de um cigarro que eu furtara do Martiniano Ribeiro: “Ele tava no coreto que nem um trem de ferro!”, disse. Minha mãe me fez tomar bicarbonato, mas não me dera pitos nem conselhos. Na casa do senhor Brandão melhorei, mascando para esfriar com a língua o céu da boca; tinha o rosto vermelho como uma papoula e minhas irmãs me olhavam sérias e ofendidas. Logo se despediram e Dona Ordália queria que eu ficasse mais um pouco, o que mamãe recusou: o pai dele deve sentir o cheiro da cachaça… Para desilusão de todos, o meu pai, quando lhe contaram, limitou-se a dizer: “Esse Ciroco é louco…” Nunca mais tomei cachaça na vida. O cigarro, mais tarde, foi um vício que mantive por cinquenta anos e que deixei há dez, mas ainda sinto saudades da nicotina.

Dos ex-escravos, a presença mais marcante na minha infância e adolescência foi a de Maria de Jesus, que chamávamos de Tia Maria. Uma velha liberta centenária, cega e paralítica. Durante meio século, ela esteve naquela cama limpa e cuidada pela filha, Sá Antônia, a nossa cozinheira, a criatura mais cândida e bondosa que conheci. Tia Maria, inseparável do seu rosário de coroços de azeitona, orava por muitas pessoas que iam pedir-lhe que rezasse por elas. Aquele quarto cuja janela dava para o nosso jardinzinho e donde se avistava a igreja Matriz de Santa Rita, tinha cheiro de alfazema e era um lugar gostoso de se ficar, olhando a praça com seus canteiros de miosótis e vendo Tia Maria desfiar as contas do rosário, balbuciando orações. Ela nos conhecia a todos pela voz e pelo andar. Mamãe mandava-nos, todas as manhãs, tomar bênção à Tia Maria. O vigário da Paróquia, Monsenhor Calasans Nogueira, seu confessor, falou tanto dela que o nosso Bispo diocesano, Dom Otávio Chagas de Miranda, de Pouso Alegre, veio visitá-la e, após ouvi-la em confissão, disse, que todos na casa ouviram: “Essa mulher é uma santa”.

As outras pretas da casa nunca foram escravas: Maria Bonita que, às vezes, chamávamos de Maria Negrinha, foi babá da minha irmã Lourdes, minha e do Hélio. Ela me chamava de “Ciroco”, apelido que papai também se referia a mim, quando estava de bom humor ou achava graça de algo que eu fazia, quando pequeno. Maria sempre teve um carinho especial por mim.

Maria Bonita tinha grande predomínio sobre os pretos da cidade. Era a mulher do Bloco das Cravinas, da gente de cor, que foi o mais alegre dos carnavais de Santa Rita: inda hoje pareço ouvir a marcial abertura da bateria das cravinas, que punha o povo de pé. Criou a Associação José do Patrocínio, com bela sede, onde se juntavam os pretos nos festivos bailes onde dancei muitas vezes na minha juventude, pois, lá, não havia preconceitos.

Não posso me esquecer, também, de Sá Gabriela, que chamávamos de Biela. Ela não era empregada de ninguém. Tratava-se Biela para assar biscoitos de trigo, de milho ou de mandioca, quitutes, de que era mestra incomparável. Nos natais, preparava perus de macios peitos e recheio de vísceras, passas e figos secos com farinha de milho. Quando não tinha serviço, ia à nossa casa e entrava gritando: “Louvado seja o nosso senhor Jesus Cristo!” e ia para a cozinha conversar com as outras pretas, ou à cama onde Tia Maria rezava para orarem juntas o terço. Muito magra e muito alta, trajava-se de branco, o lenço alvo amarrado à cabeça, sempre rindo; tinha paixão pelo jogo do bicho: “Cyro, meu filho, sonhei hoje com jacaré… vai dar na cabeça.” Eu lhe arranjava uns trocados para jogar. Um dia, acertou no tigre e foi comovente a sua alegria.

Biela tinha pavor de ser enterrada em cova rasa. Morava perto do cemitério velho e via os pobres ou desconhecidos que morriam na Santa Casa serem depositados na fria e úmida cova, envoltos apenas em um lençol, pois o nosocômio possuía só um caixão de madeira para levar os mortos e voltava vazio para servir os outros. Sempre dizia em minha casa: “Não me deixem sepultar no chão!” Ela era madrinha do meu irmão caçula, Hélio. Quando morreu, o Hélio mandou construir um túmulo para ela, pintado de branco e encimado por uma cruz de ferro, onde Biela dorme seu merecido sono entre paredes de cimento, aquecidas pelo sol.

Extraído da obra “Crônica das Casas Demolidas” – 1992 – Editora Gabinete

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