O drama vivido por Erasmo Cabral em Santa Rita do Sapucaí

Erasmo Cabral foi um produtor rural e capitalista que viveu em Santa Rita do Sapucaí no início do século XX e que experimentou uma catástrofe ao perceber que havia perdido toda a sua fortuna, após a queda da bolsa de Nova York, em 1929. Importante exportador de café, o homem não só perdeu a sua fortuna quando baixou o preço do café, como se viu impossibilitado de pagar os credores, o que também os levou à falência. Diversos livros contam a trajetória deste homem e a obra “Menino sem passado”, de Silviano Santiago, é uma delas. Confira, abaixo, um trecho do livro que remonta aos tempos em que Erasmo Cabral era um dos homens mais poderosos da cidade. O link para compra do livro encontra-se após o texto.

Erasmo Cabral

Ao pisar a merda da miséria, ele desdobra a antiga fleuma soberana e a estende sobre a comunidade pobre que, no entanto, se faz inimiga após a derrocada fatal. Não serão os maus-tratos dos fazendeiros amigos, empobrecidos pela falência que o empurrarão ao ressentimento e ao contra-ataque. Como boiadeiro na estrada afora, gosta de conduzir a própria vida e a dos seus com imaginação, destemor e autoridade. E também, à distância, com generosidade e sem violência. Com o garbo e a graça de quem, sem pedir licença, apenas inspirado pelo temperamento de empreendedor, sai à frente. Seja para comandar, seja para encaminhar. Assim também dirige o cobiçado automóvel pelas estradas de rodagem que manda construir ao redor do domínio agrícola. O carro sem a boa estrada é mera extravagância, alegria da família, sem dúvida, mas bibelô de luxo. Com a boa estrada, ele é a imagem viva do seu desejo de sucesso e da vontade de todos. O desejo de mando se casa com o controle da comunidade e com a vontade de poder. Coronel Erasmo Cabral.

Desejo de mando, espírito comunitário e vontade de poder são os grandes derrotados pela falência do Coronel. Em São Sebastião da Bela Vista, seu corpo permanece, no entanto, salvo das difamações e, na fazenda do Paredão, tão íntegro quanto no passado. Não é o Coronel que se refugia em Itajubá. A fama transcende o corpo que, abatido pela falência e pela diabetes, encerra o périplo da vida.
No rendoso cafezal sul-mineiro, o ex-seminarista e coronel faz trabalho voluntário e catequético. Junto aos obedientes colonos que o veneram, não se descuida dos ensinamentos aprendidos com os padres e inventa os princípios básicos que norteiam o sentido da solidariedade entre os deserdados. Na fazenda do Paredão, festeja os anos publicamente, em cerimônia que se abre com o vigário a entronizar na morada o Sagrado Coração de Jesus e Maria Santíssima.

Na foto que a Jura me mostra, surge vestido em túnica de cores fortes, brilhantes e alegres. Sobrevive por alguns meses e, de repente, reaparece no caixão, envolto por flores e vestido com a roupa negra e fúnebre da morte.

Centro da atuação política do coronel Erasmo Cabral, São Sebastião da Bela Vista tinha sido antiga freguesia e era então arraial da comarca de Santa Rita do Sapucaí. Nos arredores, está assentada a residência familiar do coronel, sede, por sua vez, da fazenda de café que toma por empréstimo o nome da magnífica Serra do Paredão. A comarca possui um clima tropical de altitude. Chuvas abundantes de verão. No inverno, frentes frias vindas do polo Sul provocam o fenômeno da geada. Terra e clima ideais para o plantio e cultivo cafeeiro.

A sede da fazenda se situa numa colina. Tem instalação elétrica própria que movimenta o moderno maquinário para beneficiamento e classificação do café. Da janela do quarto da filha Jurandy, avista-se o terreno para secagem dos grãos, com a tulha para o seu armazenamento e mais a máquina de beneficiar. Carros de boi despejam na grande área de terreno plano o café que vem do cafezal. Em 1924, calculava-se a produção média de café da fazenda em termos de doze mil arrobas produzidas por cerca de duzentos e cinquenta mil pés de café. Daquela janela também se avista a estrada que leva à vizinha São Sebastião da Bela Vista e Santa Rita do Sapucaí.

A morada da família é espaçosa, com oito quartos, uma grande sala de jantar e uma de visita, a despensa e o escritório comercial, além de outras dependências. A boa alimentação da família e dos agregados é responsabilidade de um casal de imigrantes portugueses, encontrado ao acaso pelo patriarca em um restaurante carioca. Não muito distante da sede da fazenda, ergue-se uma escola onde um casal de professores dá aula aos filhos e filhas dos colonos. Destacam-se ainda uma bomba de gasolina que serve à casa e aos que, em viagem, reabastecem o veículo, e uma vila com vinte casinhas brancas, moradia dos recém imigrantes italianos. Cada família tem a sua rocinha, onde cultiva o necessário para a sua subsistência diária. Contratado pelo fazendeiro, um imigrante alemão cria bicho-da-seda no alto da serra. Empresa malfadada pois, logo o viveiro pega fogo, com as lagartas, casulos e amoreiras. O alemão desaparece.

A sala de visitas permanece constantemente fechada e só é aberta para os visitantes ilustres que o coronel recebe. Nela, há uma galeria de retratos de parentes já falecidos e telas de Rodolfo Chambelland (1879-1967), convidado rotineiro da família e já famoso pela tela “Baile à fantasia” de 1913 (hoje no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro). Na entrada, destaca-se a varanda toda envidraçada, pouco comum em construção no campo da época.

Na década de 1920, Erasmo Cabral acrescenta aos seus bens parte das fazendas Aliança, Turbo e Sabará. Torna-se o principal dirigente da Cabral & Mendes, proprietária das três fazendas. Erasmo Cabral não é apenas o possuidor de terras e o maior produtor de café da região. Também intermedeia e negocia com firma exportadora a produção de café dos fazendeiros locais. É também de sua propriedade um dos maiores e mais bem montados armazéns de sacas de café da região, localizado nas redondezas da estação Afonso Pena, em Santa Rita do Sapucaí. Tem capacidade para abrigar vinte mil sacas, aproximadamente. De lá, elas são encaminhadas para a Estação de Ferro Sul-Mineira e transportadas para o porto de Santos. Graças a convênio com a firma estadunidense Leon Israel Agrícola, estabelecida no Brasil e especialista no transporte marítimo do café brasileiro para os portos norte-americanos, dedica-se à exportação com a estocagem prévia de sacas em estabelecimento comercial que mantém próximo do porto.

Mil novecentos e vinte e nove será um ano fatídico. Os graves problemas financeiros acarretados pela instituição “Crédito Agrícola” – invenção republicana, já que o serviço bancário era inexistente no Império – transformam-se em obstáculo intransponível para os produtores de café do final da década de 1920.
A lavoura cafeeira tornou-se possível no Brasil graças a uma confluência de fatores. disponibilidade de terra de boa qualidade. Bom clima. Disponibilidade de mão de obra barata. Mercado consumidor internacional.

A sabotar os fatores positivos, surge um problema que, com o correr da República Velha, causa mais e mais transtornos. Transforma a produção agrícola em negócio arriscado e aventureiro. Os cafezais levam de quatro a cinco anos para frutificar. A demora exige a disponibilidade de capitais para suportar o alto investimento do produtor sem retorno em curto prazo, principalmente nos primeiros anos de plantio.
O crédito em longo prazo não é recomendável, embora seja inevitável. Se e quando disponível, implica elevadíssimas taxas de juros. As principais formas de captação de capital levam a arriscados e temerários documentos públicos de financiamento, oferecidos por um terceiro, naturalmente mais prudente e precavido que o produtor. De preferência sem a assinatura ou o endosso do fazendeiro, et pour cause, a hipoteca, o penhor agrícola, o warrant e demais institutos jurídicos tornam-se a moeda de troca mais facilitada pelos investidores e a mais perigosa para o produtor.

Tudo o que facilita o negócio aventureiro facilita a especulação e o lucro do capital. O próprio investidor entra nos jogos arriscados do investimento de capital. Repete-se a frase premonitória dos futuros desastres: Não se produz café para vendê-lo, mas para negociá-lo. Um passo em falso no armazenamento especulativo das sacas de café e o assinante ou avalista do título de crédito chegam à degola e ao fundo do poço. Ao primeiro, a concordata ou a falência. Ao segundo, a desgraça financeira.
Antes da Grande Depressão, as vitórias financeiras de Erasmo Cabral já tendiam a ser mais deficitárias do que lucrativas. Suas várias atividades financeiras se baseavam na extensa e arriscada rede de relações financeiras dominadas pela especulação. Elas entrelaçam seus negócios de maneira definitiva e autodestrutiva. Na personalidade do empresário, destaca-se a inclinação para o gasto exorbitante tanto consigo quanto com os familiares. Podendo já desviar os olhos do futuro para melhor gozar o cotidiano, revela-se o lado perdulário no bem-sucedido homem de negócios. Na esquina da vida madura, ao querer se despedir da ambição exclusivamente financeira, torna-se um hedonista em plantão permanente.

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