O dia em que o negro sorriu

(Por Ivon Luiz Pinto)

Eles vieram de muito longe, há muito tempo, roubados de sua terra, assaltados em sua dignidade, separados de sua família.

Aqui chegaram como trastes de comércio, animais de trabalho, presas dos senhores coloniais. Vieram como escravos e ajudaram a formar uma nação poderosa e unida. Nos Guararapes foram tão brasileiros como os brancos e índios.

Trouxeram para o Brasil, na sua bagagem cultural, um tipo de fé inabalável no poder de Deus criador e na mansidão de Maria Santíssima. E quiseram professar essa fé com a mesma liturgia que os brancos utilizavam em suas Igrejas. Queriam uma Igreja para eles, pois não lhes era permitido entrar nas Igrejas dos brancos. Quando muito, lhes era permitido ficar do lado de fora, ao sol e à chuva, assistindo ao culto. Mas estava difícil ter a sua Igreja pois tinham que trabalhar sempre, todo dia, sem descanso, do amanhecer ao pôr do sol.

A solução foi encontrada pelos escravos da atual Tiradentes e depois copiada pelos de outras cidades. Ideia simples como a água que escorre da montanha e brilhante como o sol que ilumina a plantação: faria a sua Igreja durante a noite, revezando em turnos e turmas. Como não tinham recursos para os andaimes, a solução foi encher de terra o interior à medida que iam levantando as paredes. Com o telhado pronto e assentado, coberto e pintado, foram retirando a terra e fazendo a pintura. Tudo construído, faltava a pintura e ornamentação do altar-mor e dos laterais. Esses altares nas Igrejas dos brancos eram recamados de ouro.

Muitos escravos trabalhavam na mineração de ouro, mas infelizmente eram muito vigiados para que não roubassem o precioso metal. Em algumas regiões eram obrigados a trabalhar nus, sem roupas e adereços. Mas encontraram uma solução: o ouro é muito maleável na sua forma pura, tanto que as joalherias utilizam de uma liga com cobre para dar firmeza à jóia. Eles passaram a raspar com as unhas compridas as pepitas e veios e passar as mãos nos cabelos. À noite, na Igreja, lavavam a cabeça numa pia que ficava na entrada e o ouro ali recolhido era utilizado na decoração dos altares. Não era muito, mas foi o suficiente para deixar a talha embelezada.

Hoje, é fácil reconhecer as Igrejas que foram construídas durante a noite, pois elas trazem pintadas no arco que separa o presbitério da nave central, uma meia lua cercada por anjos de olhos fechados.
Essas Igrejas ficavam sempre fechadas, portas trancadas, para que os brancos não percebessem o furto do ouro.

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Tiradentes, é um belo exemplo dessa arquitetura. Essas lutas e dificuldades, brutalidades e insensibilidade perduraram até 1888, quando a Princesa Isabel colocou fim na escravidão.

No entanto, antes de ser sancionada a Lei Áurea, aqui em Santa Rita, no dia 18 de março de 1888, trinta e três proprietários rurais deram liberdade a seus escravos. Quase dois meses antes de se fazer a abolição total decretada pela Princesa Isabel.

Desde muito tempo esses fazendeiros acompanhavam pelos jornais da Corte o desenrolar da campanha abolicionista e aceitaram as suas ideias. Nas casas, nos alpendres, nas ruas, onde se encontrassem vinha à baila o fator abolicionista.

Quando o movimento atingiu o clímax, narra Soares Brandão Filho, não vacilaram os adeptos da boa cruzada: provocaram uma reunião, em meio a qual a emancipação dos negros foi debatida com lealdade, franqueza e espírito de humanidade.

A reunião foi na casa do Cel. Joaquim Ribeiro de Carvalho Júnior, o capitão. Dr. Maximiano lavrou a ata em que consta que eram declarados libertos, para sempre livres, os escravos dos seguintes fazendeiros: Custódio Ribeiro Pereira, João Ribeiro Pereira, José Carlos de Magalhães, Custódio Ribeiro de Carvalho Luz, Cândido José Carneiro, João Carneiro Ribeiro da Luz, Antônio Ribeiro de Carvalho, Antônio Caetano Ribeiro de Magalhães, Antônio Carneiro Ribeiro da Luz, Joaquim Carneiro de Paiva, João Ribeiro de Carvalho Luz, João Vilela dos Reis por si e por sua mãe, dona Francelina Constância de Vasconcelos, Vicente Ribeiro do Vale, Joaquim Modesto Ribeiro de Carvalho, Ananias Ribeiro do Vale, Joaquim Borges Vilela, Ana Custódio Ribeiro, Narciso da Silva, Joaquim Cândido Ribeiro de Carvalho por si e por dona Maria Ribeiro de São José, José Francisco Pereira, Joaquim Julião do Couto, José Feliciano Marques Pereira, Antônio Ribeiro de Carvalho por si e por sua sogra, dona Maria Umbelina Ribeiro, José Pereira do Couto, Joaquim Teixeira de Carvalho, José Mendes de Vasconcelos por si e por sua sogra dona Jesuina Firmina de Vasconcelos, Joaquim Inácio Ribeiro, Francisco Vilela da Palma e Antônio Cândido Ribeiro de Magalhães.

Soares Brandão conta que nos dias que se seguiram à data auspiciosa, o Caxambu vibrou noite sobre noite nele participando negros vindos do Balaio, da Piedade , de trás da serra do Mata Cachorro, festejando todos a alforria de uma raça sofredora.

Para abrigar os recém-libertos, foi lhes oferecido um morro bem ao fundo da Igreja de Santa Rita e aí eles construíram suas casas espalhadas pelas encostas e, juntos, ergueram a Capela de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros. Esse morro é onde está, hoje, a Rua Nova, a do Cruzeiro e a do Rosário.

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