Aos sete anos, minha mãe me matriculou na escola da Dona Araci Santos, jovem professora que mantinha curso primário em sua própria casa. Penteado e limpo, ganhei uma pasta com caderno e lápis, pão, queijo e uma broa de milho. Mamãe examinou as minhas orelhas, sapatos, tirou do meu bolso o estilingue, bolas de gude, pião, cordéis e canivete e pôs tudo na gaveta do guarda-louça. Atendeu minhas ponderações que o canivete era preciso para apontar o lápis e me devolveu. Eu tinha intenção de, no recreio, achar algum bom gancho de atiradeira, no pomar da Dona Araci. Minha irmã, Lourdes, já segundanista da escola, aguardava paciente e pronta, com a sua bolsa de livros e um enorme laço de fita nos cabelos. Saímos para a praça ensolarada e deserta, onde se ouvia apenas o marulhar da água fresca da fonte velha.
A recordação mais profunda que tive da casa da Dona Araci foi de uma saleta ou vestíbulo precedente à sala de aulas. Ali, dependurado à porta, havia um quadro representando um veleiro na tempestade; o mar, varrido pelos ventos que esfarrapavam as velas era plúmbeo e altas ondas com brancas cabeleiras de espuma; no convés, marinheiros, com as vestes coladas ao corpo pela força do furacão, manobravam cabos, colhiam velas, enquanto o comandante, curvado sobre a roda do leme, tentava manter a rota. Não me lembro o nome do pintor, mas nunca me esqueci das cores sombrias do céu e do mar, do branco velame e a proa dourada açoitada pela fúria das águas. Muito viajei naquele navio. A bússola tinha quebrado, não se viam as estrelas no céu velado pelos cúmulo-nimbos e o barco vagava à deriva. Tinham acabado os mantimentos e só eu, embaixo da cama, guardava uma lata cheia de brevidades. Só comia à noite e esperava o estrondo do trovão para abrir a lata; não por egoismo, mas a provisão não daria nem para um terço dos tripulantes e, se alguém desconfiasse da minha lata, eu teria de apear em pleno oceano ou caminhar na prancha. Dona Araci queixava-se de que eu não prestava atenção às aulas. Até que, no fim do ano, ganhei um livro ilustrado narrando as aventuras de Robinson Crusoé.
Desembarquei daquele navio, já enjoado de não achar porto. Agora, eu possuía uma cabana na floresta amazônica, abarrotada de anzóis, linhas e espingardas de vários calibres; uma moenda de ferro da marca Helm-Stolts – que meu pai vendia – um canteiro de cana, outro de amendoins, porque eu podia prescindir de tudo, inclusive de roupas e sapatos, mas nunca de pé-de-moleque, doce essencial à minha vida (até hoje, mais de setenta anos depois, vou a Piranguinho comprá-los).