Histórias incríveis do pianista e professor santa-ritense Caio Vono

Como foi o caso do aniversário da Brasília Super FM?

Eu toquei na rádio por seis anos. O programa chamava-se “O piano ao cair da noite” e acontecia, ao vivo, às quintas-feiras. No sexto aniversário da emissora, teve uma festa no palco-auditório da rádio, localizado no Conjunto Nacional de Brasília. O pianista efetivo era o Paulo Burgos, primo da Gal Costa e músico da cantora portuguesa Amália Rodrigues. Naquela festa, eu tinha combinado com o Paulo de fazer uma surpresa e nem o dono da rádio sabia. Eu sairia do meio do publico, no meio da apresentação, e tocaria com ele, a quatro mãos, o tema de “A volta ao mundo em oitenta dias”. O combinado era ele tocar a música em ritmo de valsa e, ao fim, repetir quatro vezes em escala descendente, em Dó menor, para dar tempo de eu sair do meio do público e realizarmos um improviso. Como eu não tinha colocado o meu nome na lista dos pianistas que iriam se apresentar, o Mário Garofallo, dono da Rádio, ficava dando sinal pra mim, sem saber quando eu entraria, mas eu fingia que não o via. Ele ficou uma fera… Assim que o Paulo Burgos deu a deixa para eu entrar, eu saí do meio do público e me dirigi depressa para o palco. Nessa altura, quando me viu correr em direção ao pianista, um indivíduo na plateia achou que eu faria um atentado ou atrapalharia a apresentação, gritou “Não!” e me pegou pela camisa! Como eu passei muito depressa, o homem se desequilibrou e caiu de joelhos no meio do palco. Deu tempo de me sentar no banco e acompanhar o andamento da música. Quando o público presenciou a cena do meu solo, com aquele indivíduo agarrado na fralda da minha camisa, foi ao delírio! Todo mundo começou a rir! Ele quase morreu de vergonha, mas foi exatamente o que deu charme à apresentação!

E a história do Embaixador da Líbia?

Eu tocava em um bar lá em Brasília chamado Mistura Fina. Certa noite, apareceram uns estudantes com fisionomia diferente e eles conversavam com um sotaque estranho que eu não conseguia identificar. No intervalo de uma das minhas músicas, eu estava tomando uma bebida no balcão e eles chegaram com um copo de Jack Daniels na mão. Eu perguntei de onde eles eram e me desafiaram a descobrir a origem. “Você pode tentar cinco vezes!” – disse um deles. “Paraguaios? Bolivianos? Uruguaios? Argentinos? Chilenos?” – arrisquei algo por aqui. E eles disseram: “Nós somos da Líbia!” Eu não havia arriscado um país árabe por causa do Jack Daniels. E um deles brincou: “Longe do chefe bode!”. E durante a conversa com eles eu falei sobre a história da Líbia, sobre as cidades, sobre Trípoli, Bengasi, sobre a dominação dos líbios pelos italianos na época do fascimo… Eles ficaram abismados de ver como eu sabia a respeito da terra deles e comentaram com o Embaixador da Líbia que me mandou um convite para um jantar que aconteceria naquela semana. Foi um banquete riquíssimo, no Clube Naval. Cada estudante ficava tomando conta de uma mesa, ocupada por sete pessoas. Foi a primeira e única vez que eu vi um banquete em que tivesse faisão servido com penas. Eu sempre via aquilo em filmes, mas nunca na vida real. Durante o banquete, aqueles rapazes ficaram só no suco e eu perguntei: “Cadê o Jack Daniels?” E um deles respondeu: “Na frente do chefe num bode!”

Conte-nos sobre sua amizade com Johnny Maddox

Quando eu tinha treze para quatorze anos, havia um serviço de auto-falantes no antigo Bar Trianon, onde hoje é a Cafeteria Caruso que ficava tocando músicas, enquanto a turma passeava pelo jardim. O prefixo do programa era um disco de piano de hagtime, no estilo Honky-tonk, de um pianista alemão Der Schräge Otto (conhecido no Brasil como Pau d’Água). Era divertido porque ele imitava um bêbado tocando e cantando e eu gostei daquilo. Sabendo que aquele som havia chamado a minha atenção, a minha babá me deu um disco de 78 rotações, igualzinho ao do serviço de auto-falantes. O tempo passou, eu já estava em Brasília e apresentei um espetáculo sobre a história do jazz contada ao piano. Por conta desse show, acabei escrevendo um livro intitulado “Introdução ao Jazz e seus estilos” e, por causa desta obra fui convidado pela adida cultural da Embaixada Americana para tomar um chá, ocasião em que passou o meu contato ao Departamento de Estado e recebi um convite para visitar os Estados Unidos para mapear o que sobrou do velho jazz ao piano. Permaneci um mês por lá com tudo pago. O guia que colocaram à minha disposição estava iniciando a carreira diplomática. Era sobrinho do dono da pimenta Tabasco. Hoje ele é aposentado como Cônsul Geral dos Estados Unidos na Itália. Ele, então, me disse: “Olha, me pediram para ser seu guia, mas eu não entendo nada de Jazz. Na realidade, quem o acompanharia comeu um peixe estragado e está internado em um hospital. Tudo o que sei sobre Jazz é que em Alexandria, ao lado de Washington, tem um pianista que toca um negócio diferente… se você quiser, a gente vai lá…” Quando começamos a subir a escada do restaurante onde o músico se apresentava, comecei a escutar um ragtime no estilo Honky-tonk, parecido com o do alemão. Foi ali que eu descobri que era um pianista americano chamado Johnny Maddox que havia regravado um disco do Crazzy Otto, nos Estados Unidos, e vendido mais de um milhão de cópias em apenas um mês. O que aconteceu é que esse estilo estava no ostracismo, foi redescoberto pelo alemão e copiado pelo americano. Pra você ter uma ideia, existe até uma estrela do Johnny Maddox na Calçada da Fama de Hollywood. Nossa amizade foi imediata e mantivemos correspondência por 30 anos.

Como foi o episódio do aniversário dele?

No dia 4 de agosto de 1989, eu retornei aos Estados Unidos e levei meu segundo livro de presente pra ele. Nesse trabalho, levantei a história do disco que um soldado, que era colega do Elvis e que havia feito serviço militar na Alemanha, trouxe em seu retorno à América. Aquele disco foi parar em uma rádio, caiu no agrado das pessoas e todo mundo queria saber que música era aquela. O disk jockey da rádio comentou com Johnny Maddox, que era vendedor de uma loja de discos, que ele deveria regravar aquele trabalho e foi o que ele fez. O disco foi um sucesso enorme, Johnny Maddox tornou-se celebridade e foi o responsável pelo renascimento do estilo nos Estados Unidos. Naquele dia, era aniversário do músico e eu estava presente na festa. O dono do Restaurante, um italiano, pediu para que eu tocasse o “Parabéns a você”, quando o bolo de aniversário entrasse em cena, para fazer surpresa ao músico. Johnny Maddox estava sentado, no intervalo de sua apresentação, quando entrou um carrinho com um bolo e velas. A equipe do restaurante seguiu atrás, em fila, e comecei a tocar o “Parabéns”. No fim da música repeti a canção, em ritmo de Jazz, com improvisos e tive uma das maiores emoções da minha vida. Até hoje me emociono quando lembro: o restaurante inteiro me aplaudindo, em pé. Foi inesquecível.

Como começou a sua história como pianista?

Os meus pais sempre me incentivaram com música. Minha mãe tocava piano muito bem e meu pai era violonista. Ele gostava de tocar marchas militares no violão… solava e se acompanhava. Ainda guardo uma gravação dele. Dá até impressão de que tinha mais alguém tocando junto. Ele aprendeu essa técnica com a minha avó.

Aos sete anos, pedi para estudar piano, mas meus pais disseram que era para esperar eu ficar maiorzinho. Eles tinham medo que fosse apenas fogo de palha. Eu fui, então, à casa da Dona Marieta Brigagão, mãe da pianista Lourdes Brigagão, em frente à Padaria do Paduan, e pedi que ela me ensinasse a tocar. “Dona Marieta, meu pai me mandou aqui pra senhora me dar aulas de piano.” Eu passei a ir, mas não tinha dinheiro para pagar. Comecei a vender garrafas, jornais, pedir dinheiro aos parentes… Meus pais acharam estranho “Você só falta cobrar ingresso para as visitas que chegam aqui em casa!”… E eu contei a eles que tinha um dívida com a professora. Quando eu cheguei da escola no dia seguinte, estava no primeiro ano primário da Escola Normal, eles me pegaram pela mão e me levaram à casa da Dona Marieta.

– É verdade que a senhora está dando aulas para o Caio?

– Sim! E está indo muito bem!

Eles acharam graça e começaram a pagar pelas aulas.

Estudei com a Dona Marieta, depois com a Dona Zinita, filha do Franklin Magalhães (autor da letra do hino dos Democráticos), com a Maria Longuinho e fui para BH, onde continuei estudando. Eu não tinha piano em casa. Foi o meu tio, Vicente Vono, quem me deu o meu primeiro piano.

Conte-nos um pouco sobre o seu tio…

O Vicente Vono ficou conhecido no Brasil inteiro como o Cumpadre Belarmino. Até então, era estudante de Medicina e dividiu República com Juscelino Kubitschek, depois com José Maria de Alckmin, Bilac Pinto, Gabriel Passos (fundador da Petrobrás) e um certo Guimarães Rosa.

O que aconteceu foi que o meu tio criou o personagem de um caipira contador de causos chamado Cumpadre Belarmino e o Israel Pinheiro, quando fundou a Rádio Inconfidência, queria alguém que falasse a língua do homem do campo. Meu tio foi contratado para fazer “A hora do Fazendeiro” e fez muito sucesso. Ficou famoso por conta disso e permaneceu na rádio até 1946. Recebia uma média de trezentas cartas por semana. O secretário do meu tio se tornaria conhecido, anos depois: era Rondon Pacheco.

E o Bentinho?

José Antonio Vono Filho, o Bentinho, teve um destino diferente. Foi para o Rio da Janeiro estudar Química Industrial e o tio Vicente arrumou para ele ficar na casa de um amigo. O amigo do tio Vicente chamava-se Nelson Gonçalves. Depois, ele foi morar numa pensão junto com os irmãos Cyro e Hélio de Luna. Era a pensão do senhor Batista, um português com duas filhas: Dircinha e Linda Batista. Foi quando ele conheceu o Alvarenga, que fazia dupla com Ranchinho. O parceiro havia sumido por conta de um desequilíbrio mental e a Linda Batista sugeriu que meu tio o substituísse. A partir daquele encontro, meu tio foi o primeiro caipira a tocar acordeon no rádio. Até então, as duplas só tocavam viola. Foi um sucesso muito grande. Uma das músicas que eles fizeram chamava-se “O condutor”. Filinto Müller, chefe de polícia do Getúlio Vargas, achou que estavam ironizando o presidente, já que, Führer e Duce, significavam “condutor”. Como na música dizia que o condutor não estava sabendo parar o bonde para o amor descer, acharam que era uma ironia, censuraram a música e deram ordem de prisão à dupla. No aniversário do Getúlio, a Alzira Vargas, que conhecia o tio Vicente, convidou os dois para tocar na festa e eles foram. Quando começaram a cantar, o Filinto Müller quase teve um ataque, mas não podia fazer nada. “Mas papai! É uma coisa ingênua, não tem nada de ataque! Eu conheço este povo.” Getúlio entendeu e tiraram a censura.

O que levou o senhor a compor a música “O voo do DC3”?

A aviação sempre foi a paixão da minha vida e o primeiro voo que eu fiz foi em um DC2. Quando o modelo DC3 completou 50 anos, fiz como homenagem a ele esta música, um ragtime. Eu cheguei a dar a partitura desta música a um Coronel regente da orquestra de shows da Marinha Americana, durante uma entrevista que fiz com ele, e ele me mandou uma carta dizendo que tocou a música em uma festa de natal, em frente à Casa Branca. A carta está no meu livro. Meu editor chegou a dizer: “Vamos publicar a carta, senão ninguém acredita!” Esta música também ganhou uma versão, na década de 80, durante o governo Sarney, quando veio para o país uma missão chinesa fazer um acordo com a Embraer. Em um evento na Base Aérea de Brasília, o Brigadeiro Murillo Santos ganhou um livro meu com a partitura. Eu estava no Palanque, na presença do presidente, quando a banda executou minha música, enquanto a Esquadrilha da Fumaça fazia as evoluções. Foi emocionante!

(Entrevista concedida a Carlos Romero Carneiro)

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