A história do santa-ritense conhecido como “herói da esquina maldita”

(Por Osmar Freitas Júnior)

Durante o período Médici, representantes de todas as tendências políticas de São Paulo costumavam frequentar um “aparelho”. Ali traçavam os destinos do país. Muitas vezes, as diferenças ideológicas eram resolvidas no mesmo estilo lusitano, ou seja: na base do pé do ouvido e da pernada. Só não partiam para o tiro porque o carisma de um santa-ritense impedia. Um caudilho aglutinava as massas, fazendo com que todos gritassem, em uníssono, a mesma palavra de ordem: “Zé, me vê mais um chopp!”

José Henrique da Silva, garçom do malfadado Bar e Restaurante Riviera, comandou galhardamente todas as revoluções etílicas travadas nos últimos 30 anos. Com seus conhaques, vermute e cerveja, ordenava ataques, rodadas duplas para a mesa 10 e ainda dava uma de almirante, torpedeando – certeiramente – o coração de mocinhas com os bilhetinhos mais insólitos que os paqueras podiam preparar. Até que, um dia, o cansado general decidiu bater em retirada, levando consigo as medalhas conquistadas em seu campo de batalha, varizes que cobriam suas pernas como cipós da selva Amazônica. O Zé iria se aposentar.

A popular “Esquina Maldita”, formada pelas avenidas Paulista e Consolação, recebeu este nome exatamente por causa do Riviera e de suas histórias. Uma vasta galeria de personagens Fellinianos desfilou por aquele pedaço desde 1949, quando Ignácio Mariscalco abriu as portas do covil. Intelectuais de direita e esquerda, indecisos, feministas e mulherengos, jornalistas maledicentes e cineastas malditos, hippies de boutique e sarjeta, alcaguetas e policiais, além de bêbados dos mais diversos quilates confraternizavam por ali. Ninguém que viveu em São Paulo, principalmente na primeira metade dos anos 70, deixou de molhar as palavras com o chopp do Riva. O clima era seco e árido: tempo quente na política. Com isso, a sede do pessoal aumentava e cada decreto presidencial fazia com que o bar perdesse rapidamente o seu estoque de bebidas, sempre servidas pelo Zé.

E como a turma não tinha mais o que fazer além de beber cerveja quente e falar mal do rei, investigava lendas dos mais variados assuntos. Um dos temas prediletos era o afamado Zé. Corria à boca pequena que havia nascido em Buenos Aires, onde conheceu o inseparável amigo Carlos Gardel. Teria sido o rei dos cabarés, onde cafetinava a belíssima Lola, mulher de encantos venenosos. Por causa dela, José teria se metido num duelo mortal com outro proxeneta, o Ramiro, em que enfiou o punhal até o cabo. Procurado pela polícia, veio dar com os costados em São Paulo. Isso explicaria o fato de dançar tão bem o tango e manter no rosto aquele ar nostálgico dos Portenhos.

Mas entre a lenda e a realidade, corria um rio de chopp. Na verdade, Zé jamais esteve na Argentina, nem conheceu nenhuma Lola Venenosa. Tampouco pinicou um rufião. Nasceu no interior de Minas, na pacata Santa Rita do Sapucaí, onde costumava caçar passarinho, deitar no mato e fazer aquelas coisas que caipira gosta. Quando veio para São Paulo, na década de 40, teve como primeiro emprego a condução de bondes, era motorneiro. Andou na linha por pouco tempo, pois a vida de boêmio não era compatível com os horários do bonde. Foi ser garçom de um bar novo, que um certo Lambreta havia montado na Avenida Paulista e que Maniscalco comprara antes de inaugurado. Dali nunca mais saiu.

Sua fama atravessou fronteiras. Imortalizado pelo desenhista Chico Caruso em duas histórias em quadrinhos, Zé foi um dos responsáveis pela vinda do jornalista José Antônio para São Paulo. O escriba migrou do Rio Grande do Sul com a firme decisão de se tornar frequentador do Riviera, após ler a historieta num gibi. Também o Amir, poeta menor (tem um metro e meio de altura), cometeu um sem-número de versos ao garçom. Mas a verdadeira glória do mitológico Zé foi ter participado de histórias impagáveis do acervo folclórico local. Nas brigas frequentes, Zé jamais participava lutando, mas sempre na condição de observador crítico. Por essas e outras, o garçom fez uma legião de amigos, tendo as mulheres como suas principais admiradoras. Aos sábados, quando o Riviera atingia o seu esplendor, Zé não tinha braços para todas as mocinhas que queriam beijá-lo, agarrá-lo e fazer toda sorte de libertinagens. O malandro dava corda para todas, mas poucas tiveram o seleto em suas andanças madrugada adentro. Quando o expediente acabava, ele ia à padaria mais próxima comer pão com manteiga e beber conhaque. Às vezes, dava uma passadinha no “Garitão”, boate de tango e bolero onde prostitutas, rufiões, garçons, bookmakers e outros bichos se reuniam para dançar e tratar de negócios.
O parceiro predileto do Zé era o Chico Caruso, tanto que se consideravam como irmãos. Depois da gandaia, o Chico ia levar o amigo para casa, em Taboão da Serra. Esse hábito virou um álibi para o desenhista: toda vez que a esposa exigia explicações sobre o seu paradeiro, ele respondia, cinicamente: “Fui levar o Zé pra casa.” – ao que a mulher respondia: “Puxa, o Zé deve gostar muito de você! Foi levá-lo em Santa Rita?”

Mas sempre foi difícil imaginar a idade daquele homem. Uns diziam que tinha 59, mas sem comprovação. Ele mesmo, nunca dizia a própria idade. Afinal, o mistério ajudava a preservar a aura de mito. No momento de preparar sua aposentadoria, os boêmios mais inveterados, que há muito tempo deixaram de frequentar o Riviera em busca de outros redutos mais alto astral, ainda acreditavam que o garçom voltaria. Mas a saída do homem foi tão inexorável quando a decadência do bar. Foi só anunciarem a tal abertura para que ratos abandonassem a barca, em busca de novos rincões. O clima da casa já estava mais do que saturado, provocando lembranças de tempos desagradáveis.

Os frequentadores resolveram mudar de Menu saindo à procura de outras opções. O bar acabou e o Zé também. Não vai mais servir chopp, nem “Royal” envenenado. Em seu lugar ficaram Juvenal (25 anos de casa) e um batalhão de moscas girando em torno das mesas.

Texto publicado no Jornal da República, edição 3, Ano 1, do dia 29 de agosto de 1979.

SEM COMENTÁRIOS

DEIXE UMA RESPOSTA