A gaita do Dito

(Por Cyro de Luna Dias)

Sô Morais parecia um profeta bíblico. Nariz aquilino, vasta cabeleira branca e barbas que lhe cobriam o peito; ar tranquilo, com certa nobreza dos gestos, como um imperador destronado. Fora proprietário de alguns imóveis; azares da vida, perdera-os todos, restando apenas a velha residência na margem do rio, junto ao lugar onde outrora começava a ponte de madeira do Capitão João Antônio Dias, há muito desaparecida. Sem aposentadoria – que não existia naquele tempo para os proprietários – e sem capacidade de trabalho, tornou-se o pobre oficial da cidade. Não pedia esmolas, aceitava-as olhando fixamente para o transeunte e indo embora se a pessoa não fizesse menção de mexer nos bolsos. Viúvo, casou pela segunda vez, pois precisava de mulher para cozinhar, lavar roupa e cuidar dele. Todo sábado, pela manhã, aparecia na porta de casa, gratificava-nos com um bom dia, conversava um pouco, aceitava algum dinheiro. Não era homem de cumprimento ou de “Deus lhe pague” para ninguém mas, como na casa A. de Cássia se abastecia gratuitamente com fósforos, alguma panela ou caneco de folha. Sentado em uma cadeira em frente ao balcão, gostava de descansar e observar os fregueses, brindava-nos com um bom dia ou boa tarde, conforme a hora.

Como já disse, ele morava na beira do rio, em frente à loja; eu gostava de pescar, o quintal da sua casa era farto de minhocas que se criavam no lixo acumulado por muitos anos. Ali, eu cavava com a faca, na porta da cozinha, colhendo gordas minhocas para iscas. Certo dia, ouvi-o resmungar para a mulher, enquanto eu revolvia o chão: “esse filho do Cássia engorda os peixes para o Ludgero.” (O tal Ludgero era um pescador profissional; tinha botes, remos e longas linhas recheadas de anzóis que atravessavam o rio amarradas – de árvore em árvore – na margem oposta.)

Raramente eu pegava uns lambaris ou mandis que engoliam o anzol e davam trabalho para recuperá-lo, pois estes peixes são dotados de dolorosos ferrões no dorso e nos lados das guelras. Uma vez, ofereci-os ao Morais, que recusou, dizendo que peixe implica em gasto de azeite, frigideira, lenha, amolação de limpar tripas e escamas e retirar espinhas: “bicho que só dá prejuízo e não tem sustança…”

Do segundo casamento, já bem velho, teve um filho pouco mais novo do que eu, magrinho e calado, que ficava sentado na soleira da porta, coçando o joelho. Eu passava com a vara de pesca e o cumprimentava: “Ê, Dito…”, ao qual ele respondia com um grunhido, pois tinha preguiça de falar.

Certa vez, era Natal, a loja ficava aberta até mais tarde e meu pai, diante da vitrine iluminada, viu Dito fascinado pelas gaitas Hering que brilhavam como se fossem de prata. Tirou uma e ofereceu a ele, que relutou, quase não acreditando. Ele a tomou e saiu correndo, talvez com receio que o doador se arrependesse.

Alta noite, todos na Missa do Galo, eu em casa, ouvi leves sons de gaita, vindos da beira do rio, como pastores chamando rebanhos nos campos da Judéia. O luar, através das vidraças da copa azulava o chão e as paredes da casa e, lá fora, os telhados brilhavam em tons de cinza azulados. Naquela noite de natal, a gaita soou até tarde, medrosamente, estudando a melodia oculta nas escalas; sons débeis que ainda não eram músicas, casavam-se com a intensa luminosidade e placidez da noite.

Dito aprendeu sozinho a tocar o pequeno pífaro; executava músicas populares conhecidas na época e valsas de compositores nacionais. Aquela gaita, que mais parecia brinquedo do que que instrumento musical, mudou a vida do menino. Já não vagabundava pelas ruas ou dormia nas soleiras das casas, nem ouvia mais pessoas dizendo “vai se tornar um mendigo.” Ele tirava as melodias de tangos que pareciam executadas por acordeões. E acompanhava, com passos de dança, os acordes da sua música; pagavam-no para tocar em festinhas ou reuniões e sempre ganhava uns trocados na saleta do casarão da praça, no alpendre da casa da Dona Maricotinha, na sala do tio Leopoldo de Luna – tia Nenê o apreciava muito – dançando aos acordes de “Caminito” e “Madre-Selva” ou saltitando na alegre canção infantil: “Urubu subiu no céu com fama de dançador”.

Sô Morais morreu cego; a cegueira atingiu Dito na flor da idade, como uma lâmpada que, de súbito, se queimasse. Cego, não voltou para as ruas; trancou-se em casa, tratado pela mãe. A melodia nascida da escuridão tornou-se mais triste, como um apelo à luz e uma saudade do verde das árvores e das águas do rio.

Durante minhas férias, eu chegava de Lorena e, à noite, quando já silenciosos os pianos das minhas irmãs e da Glorinha Moreira, ouvia as mesmas músicas que elas executavam, repetidas na gaita, mas sofridas, trêmulas, como um lamento triste.

Quando o destino me levou para o Rio de Janeiro voltei, anos depois, saudoso de todas as coisas da minha terra. Contaram-me que Dito havia morrido e que no seu caixão não havia flores, mas tinha as mãos cruzadas sobre o peito e a gaita amiga sob a palma das mãos.

(Extraído da obra “Crônica das Casas Demolidas” – Cyro de Luna Dias – Editora Gabinete)

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