(Por Carlos Romero Carneiro)
Eu nunca tinha visto um santinho de gente morta. Também nunca tinha sido tocado por coisas que só preocupam gente grande. Na minha idade já era capaz de entender algumas sílabas e o que li naquela mensagem foi o bastante para descobrir que alguém tão novo já poderia partir. Na fotografia colada em um impresso gravado em tinta preta, a foto de um menininho. Tinha os cabelos repartidos ao meio, camiseta listrada com gola polo, nariz afilado e olhinhos tão pequenos que mal podiam enxergar o mundo. Ainda me lembro. Encontrei aquele panfleto no criado que ladeava a cama do meu pai, sob o rádio relógio que acordava a casa inteira com um alarme estridente, tocado sempre fora de hora. Eu quis saber da criança e meu pai me contou que era o filho de um amigo. Eu não sabia o que era câncer, muito menos que criança morria e a fotografia três por quatro colada em cima do seu nome me marcou pelo resto da vida. Logo entendi que a estrelinha sinalizava o nascimento e que a cruz indicava a partida. Fiz as contas, calculei os dias e percebi que o rapazinho era só um ano mais velho do que eu. Se não tivesse sido tocado pela maldita, poderíamos ter andado de bicicleta, apertado campainha das casas e jogado no Brasilzinho do professor Aleluia. O santinho da criança permaneceu na gaveta por muitos anos e, quando fuçava nas coisas do meu pai, me deparava com a fotografia que, com o tempo, se descolou do impresso. Eu crescia, fazia as primeiras artes, aprendia novas lições, colecionava amigos, mas o menino permanecia ali. Tinha o olhar penetrante, como se conseguisse invadir as lentes da câmera que o eternizou e ler a alma de quem fitasse a sua imagem. A criança nascida em setenta e seis parecia enviar um recado: “Fique atento… A vida é curta.” E depois de alguns anos, visitei com frequência cada vez menor o compartimento recheado de lenços, meias órfãs, uma cartinha de “dia dos pais” com mensagem que copiei da lousa e a fotografia da criança que se escondia entre uma montanha de quinquilharias. Não sei precisar quando foi que o impresso sumiu daquele cenário indiferente ao tempo. E acabei me esquecendo do seu nome, das nossas brincadeiras inventadas, do dia em que nasceu e da data de sua morte. A presença daquele menino foi se apagando, perdendo a cor, até desaparecer às vésperas da minha adolescência. Um dia, percebi que a sua fotografia fora transportada para o guarda-roupas, permaneceu alguns anos presa em uma fresta no fundo da gaveta, até desaparecer por completo. Mais de quarenta anos se passaram e eu já não me lembrava daquele santinho, muito menos da história do menino que vivia no criado à beira da cama dos meus pais. Foi num sonho, há alguns dias, que eu me lembrei da experiência vivida em meus primeiros tempos. Enquanto dormia, quase pela manhã, avistei o garotinho que permaneceu criança, como se pedisse para saltar daquele repositório de miudezas e ganhar as ruas. Já não tinha à mostra somente o rosto e parte do tronco. Estava livre, com mãos e perninhas finas de criança, ao lado de uma bicicleta que já nem se faz hoje em dia. Eu acordei, enviei uma mensagem de “feliz aniversário” à minha mãe, disse que passaria para lhe dar um abraço e perguntei se ela ainda tinha aquela fotografia em branco e preto de dimensões reduzidas. “Vou procurar”, mas não a encontrou. E desejei que os pais do rapazinho tivessem superado a sua perda, conseguido levar a vida com leveza e desarrumado o quarto infantil, contrariando Chico, quando tocado pela saudade. Escrevo em memória do menininho. Escrevo para libertá-lo dos meus pensamentos. E espero que ainda se lembre das nossas aventuras e do tempo em que habitou as bagunçadas gavetas da minha memória.