(Por Bráulio Souza Vianna)
Raimundo Matias estava sentado na venda do Murilo. Ninguém o chamava de Raimundo, exceto os pais, seu Alecindo Matias, conhecido por Lucindo, e dona Olivina Ribeiro da Silva. Todos os outros o chamavam de “Nego do Lucindo” ou simplesmente “Nego”. Tinha quebrado o braço há alguns meses, foi mal consertado, o que exigiu cirurgias para colocar no lugar, e estava se recuperando. Aquele braço iria incomodá-lo por quase toda a vida, mas ele ainda não sabia disso. O ano era 1959 e tinha 14 anos. Nascera aos cinco de maio de 1945. Sua família já era conhecida por serem habilidosos com gado. Naquele dia, estava sentado na calçada da venda do Murilo quando dona Mariju e Dr. Alencar pararam para falar com ele: “Raimundo, estamos precisando de alguém para ajudar no retiro”. Gado sempre foi a sua paixão. Cavalos também, mas gado vinha primeiro. Seu braço ainda doía, mas tirar leite poderia ajudá-lo a recuperar os movimentos. Aceitou o convite e, nos primeiros dias, descia da Vilinha onde morava com a mãe para ajudar a tirar leite na Fazenda das Palmeiras. Logo mostrou a que tinha vindo. Forte, inteligente, bem humorado e apaixonado pelo que fazia, foi conquistando a confiança dos patrões. A prova de fogo foi quando o administrador, seu chefe na época, ao laçar uma novilha muito boa, recém-parida, para levá-la ao curral, acidentalmente quebrou a perna da cria, que era uma bezerra linda, filha de inseminação artificial. Instruiu Nego a dizer que a bezerra tinha quebrado a perna durante o parto. Quando papai levou um comprador para ver o gado, um sargento da Aeronáutica, ele se encantou pela novilha e lamentou o fato da bezerra ter a perna quebrada. Papai disse que ela tinha se machucado no parto e que a culpa era dos funcionários que não vigiaram. Por não gostar de mentiras, e porque ainda estava engasgado com a brutalidade do administrador, Nego não se conteve e contou a história certa. Sabia que isso poderia custar o seu emprego, mas não podia admitir. Sem saber quem estava dizendo a verdade, papai resolveu investigar e descobriu que o administrador estava levando um “por fora” nas vendas de gado, comprovando a sua desonestidade e a verdade nas palavras do Nego.
Tendo acabado o mandato de vereador, papai voltou a se apresentar na Aeronáutica, em Guaratinguetá, e mamãe passava temporadas na fazenda para a organizar enquanto que ele vinha nos finais de semana. O café do Jaraguá, por exemplo, foi ela quem plantou. Ficava no casarão com os filhos, a Angelina, nossa babá, e o administrador Haroldo para quem estávamos construindo uma casa. Enquanto não ficava pronta, ficou hospedado lá. Como o casarão era muito grande, chamou o Nego para dividir um dos quartos com o Haroldo, assim ficaria mais perto do trabalho. A partir dali, ganhamos mais um irmão.
Anos depois, após uma chuva, estavam Nego e meu pai andando pelo café para ver se tinha embotoado bem. E lá estava o Zé Moreira, capinando. “Zé, capinar o café depois de uma chuva não adianta, vai só mudar o mato de lugar”. Constrangido pela reprimenda, Zé Moreira acreditava que Nego tinha armado para ele e levado o patrão até onde ele estava. Bravo como ele era, dizia a todos que iria acertar as contas com o Nego. Um dia chegou ao curral munido de uma foice, bancando o valente. A muito custo, Nego conseguiu manter Zé Moreira à distância, até que papai chegou, conversou com ele e apaziguou os ânimos.
Muitos anos depois, Zé Moreira partiu para Holambra, onde ficou com os filhos por um longo período. Já mais idoso, com saudades, acabou voltando para a Fazenda das Palmeiras e adivinhem a quem ele pediu pouso logo que chegou, antes de papai conceder uma casa para ele morar? Isto mesmo, ao Nego.
Nego já era casado com a Eunice e, não sendo de sua natureza guardar mágoas, concedeu o pouso. Com o corpo sofrendo pela perda gradual de mobilidade que vem com a idade, Zé Moreira usava bengala. Antes de ir para a cama, pediu ao Nego que o ajudasse a tirar os sapatos, pois já não conseguia fazer a tarefa. Nego matutou, afastou a bengala para longe do alcance de Zé Moreira e só então se agachou e o ajudou.