Silvestre, um lobisomem em Santa Rita do Sapucaí

(Por Cyro de Luna Dias)

Silvestre era pequeno, no máximo um metro e meio de altura, curvado, o que o fazia menor ainda. Cor de terra, a pele, as roupas, o cabelo; na estrada tornava-se quase invisível. Caminhava com um cajado lustroso pelo suor de suas mãos e sempre olhando para o chão. Idade não definida; parecia que sempre existiu.

Menino, eu tinha medo dele; todos diziam que virava lobisomem nas noites de sexta-feira e lua cheia. Contavam que, no plenilúnio, ele se deitava no ninho de galinhas e revirava pela titica do chão, uivando, enquanto as garras lhe cresciam, pelos cobriam seu corpo e grandes caninos brilhavam em suas fauces. Uma noite, acordei com uivos sinistros vindos de algum lugar na cidade. A curiosidade maior que o medo; levantei-me e fui para a janela da sala, não sem antes acender as luzes e levar a cruz que pendia na cabeceira da cama. Eu não acreditava em lobisomem, mas a cruz era uma garantia, caso houvesse. Abri a janela – não a vidraça – e olhei o céu: nuvens negras como montanhas amontoavam-se sobre a cidade, através das quais, a lua tentava desesperadamente brilhar, conseguindo apenas um pálido reflexo cor de âmbar, no mais alto céu. Pensei: se olhar para a praça, verei na ponta do passeio da esquina um cão negro, de pé, mirando-me com olhos de brasa. Ri da bobagem que estava pensando e fechei a janela sem olhar para baixo: “Ora, deve ser algum cachorro que se perdeu do dono”. – pensei. Não apaguei a luz porque os uivos continuavam e dormi com a cruz na mão.

Tempos depois, eu já estava maiorzinho, atendi à porta onde alguém batia. Era o Silvestre: convidei-o para entrar, fez sinal que não. Meu pai atendeu-o: pedia autorização para levantar uma cabana no Campo Redondo, propriedade nossa; papai consentiu, desde que não cortasse os tarumãs que sombreavam o lugar. Dali em diante, fiquei amigo do Silvestre; ele chegava até a sorrir, embora não gostasse de falar e respondesse minhas perguntas por monossílabos. Anos depois, o Campo Redondo ficou muito movimentado com a casa do Sô Benedito e também da Sá Rosenda, viúva de um pescador que não tinha onde morar e que fez casa lá; o Silvestre, que detestava vizinhos, se mudou para a mata beira-rio, em terras de José Marques, divisórias com a chácara. Morando ali, casou-se. Continuavam os boatos de que se transformava em lobo, mas eu já não acreditava mais nisso.

Silvestre continuou amigo da minha família, onde procurava socorro nas necessidades de algum remédio (embora ele fosse curandeiro) ou mantimento, quando a comida escasseava na sua casa. Ele não pedia esmola. Vivia das raízes que vendia e de pequenos serviços, limpeza de hortas e consertos de cerca. A esposa de Silvestre era a cópia dele: o andar curvado para o chão; parados, podiam fundir-se com dois torrões de terra. Ora, aconteceu certo dia que a mulher adoeceu de febres e os chás de ervas e raízes apenas pioravam o estado da pobre senhora e Silvestre foi aconselhar-se em casa. Ele falava aos arrancos, poucas sílabas de cada vez: “Mulher doente, dois cobertores, treme… chá não adianta. Não come, bate os queixos.

Mamãe mandou levá-la numa charrete ao hospital, tendo-a recomendado à bondosa irmã Filomena, freira nossa parente pelos Vilelas; isso, pelo ano de 1946. Ali lhe curaram as febres, deram-lhe banho, coisa que nunca tinha tomado, roupas e penteados novos. Quando Silvestre foi chamado, disse: “Essa não é minha mulher!”

O que ele viu e não acreditou: a mulher era branca, pálida, olhos azuis e cabelos castanhos. O pó acumulado durante quarenta anos dera-lhe o tom marrom-cabaça semelhante a uma índia. Silvestre bateu o bordão no assoalho com força, repetindo: “Não é minha mulher!” A pobrezinha chorava e dizia: “Sou eu, Silvestre! Olha pra mim!”

Após explicações, a boa irmã, Filomena, convenceu-o a levar a esposa e ele, relutante, fez sinal para que ela o acompanhasse. Semanas depois, encontrou-se conosco na porta do casarão e disse: “Era ela mesmo… desbotada pelo sabão”.

(Extraído da obra “Crônica das Casas Demolidas”, de Cyro de Luna Dias)

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