(Por Carlos Romero Carneiro)
Santa Rita do Sapucaí é uma cidade que ainda mantém muitas de suas tradições. O período pós-carnaval, entretanto, não me causa tanto impacto como acontecia na infância. Por algum motivo, naquela época eu morria de medo de quaresma.
Na quarta-feira de cinzas, raríssimas eram as pessoas que consumiam carne. Bebida, nem pensar! As lanchonetes nem abriam. Se chovia no carnaval, os blocos desfilavam debaixo d’água porque era impensável adiar o evento para a semana seguinte. Pairava um clima de melancolia no ar que se estendia até o sábado de aleluia. Muitas pessoas que tocavam o terror o ano todo, sossegavam o facho naqueles 40 dias. Era comum as crianças irem à igreja buscar penitências. Elas enfiavam a mão num vidro, pegavam um papelzinho e nele estava escrito se elas ficariam sem consumir “chocolate”, “refrigerante” ou “doce”. A campanha da fraternidade tinha um alcance bem maior e era debatida, inclusive, nas escolas. “Pão para quem tem fome” foi a que mais me marcou porque a sua propaganda aparecia sempre nos intervalos do Picapau. Ainda me lembro das encenações que aconteciam em frente à igreja, na sexta-feira da paixão. Mesmo sem prestar atenção à peça, a criançada ia toda para a praça e ficava espiando o movimento. Algo que me chamou a atenção na época foi quando eu vi uma dupla de forasteiros bebendo cerveja, enquanto o evento acontecia. Na minha cabeça de criança aquilo era uma afronta, já que nem a Bomboniere Renata abria. Assim como a quarta depois do carnaval, aquele deveria ser um dia em que o povo jejuava comendo somente paneladas de bacalhau. Vale lembrar que, nos supermercados, o bacalhau não vinha em pequenas postas, como hoje em dia, mas quase inteiro, sem cabeça, em grandes caixas de papelão e conservado em sal grosso. No supermercado do meu avô, o povo tirava lascas do bicho e comia, ali mesmo, sem qualquer cerimônia.
Na sexta-feira da paixão, acontecia um ritual que eu gostava muito. Havia uma procissão com os coroinhas batendo matracas pela cidade, com as pessoas carregando velas e a imagem de Jesus na cruz, enquanto o Padre José liderava as rezas. Na manhã seguinte, eu era acordado no sábado por uma multidão que subia o morro do cruzeiro, parando debaixo de cruzes que representavam os mistérios. Eu sempre ia por dois motivos: podia sair bem cedo de casa e fazia picnic debaixo da paineira, quando o cortejo acabava.
Todos os anos, o meu pai se dirigia à Matriz para filmar a encenação das últimas horas de Jesus. Ele me contou que, certa vez, aconteceu um incidente durante a apresentação, mas não me lembro bem dos detalhes. Adiantando um pouco a história, aquele ritual se estendeu por algumas décadas, até que o meu filho já estivesse grandinho. Certa vez, após o evento, o meu pai editava a filmagem do dia anterior, enquanto o Gabriel brincava no chão da sala. Naquele mesmo dia, o meu filho foi para a casa dos avós e começou a passar na TV um filme sobre a paixão de Cristo. Da forma mais natural do mundo, Gabriel virou para os pais da minha esposa e gritou: “Olha! O filme da morte de Jesus! Sabia que o meu avô estava lá?” Impossível manter a seriedade, mesmo diante de uma passagem tão triste.
No sábado de aleluia, os blocos realizavam bailes com as fantasias do carnaval, mas não tinha tanta graça. As canções já eram de páscoa, a rivalidade tinha esfriado e a expectativa ficava por conta da festa de Santa Rita, que não faltava tanto para ter início.