Colecionadores de memórias

Enchente na Rua da Ponte.

(Por Carlos Romero Carneiro)

Cada um tem a sua cachaça. Alguns colecionam selos, outros reformam carros, constroem orquidários ou desfilam no carnaval. Já conheci um colecionador de miniaturas de corujas, de imagens de São Francisco e de velhas fotografias. A minha mania sempre foi colecionar memórias. Sinto prazer em ouvir pessoas com passagens peculiares e lembranças capazes de descrever um ambiente que já se transformou ou de me fazer entender como era o temperamento de uma determinada pessoa. Se encontro alguém que teve contato com Dona Sinhá, por exemplo, pergunto como era a sua voz, se usava perfumes, se tinha o linguajar ríspido ou senso de humor. Se alguém me diz que pulou carnaval no antigo Clube, quero saber que aroma tinha o lança-perfume, se o piso estava coberto de confetes ou se a orquestra era afinada. Tento guardar o máximo de informações, registro passagens que possam ser interessantes para produzir um livro e publico, nas páginas deste jornal, os acontecimentos que devem cair no conhecimento do leitor. Muita informações, guardo comigo.

Maria da Glória, Pedro, João, Jurema e Doroti, em frente à fotografia do pai, Pedro Moreira da Costa.

Dias desses, tomava um vinho com o professor Ivon e me encantei com as experiências que ele teve ao lado de algumas das personalidades mais importantes da nossa terra. Ele descreveu as suas impressões sobre o Coronel Francisco Moreira, contou detalhes do interior do antigo mercado e relatou os seus tempos de professor, indo e voltando, todos os dias, para a não tão vizinha Ouro Fino. Ivon é memória viva. Já cheguei a encontrar um jornal “Correio do Sul”, de 1964, sobre a morte do lendário farmacêutico, Adelino Carneiro Pinto, e lá estava um texto do professor de história que escreve no Empório de Notícias desde o primeiro número. Nossa amizade começou muito antes. Aos doze ou treze anos, já era seu aluno e datilografava tudo o que ele dizia durante as aulas. Como a sua letra era um garrancho e o seu conhecimento extraordinário, a lousa permanecia intocada.

Regina e Maria Antonieta.

Assim, como o Ivon, conheci grandes figuras que me fizeram entender como se comportavam algumas pessoas que só conheço de ouvir contar. De certa forma, isso me deu “super poderes”, já que adentro uma residência e – muitas vezes – sei quem passou por ali, décadas antes. Quando caminho por uma rua, quase consigo ouvir o choque das rodas de madeira das carroças contra o calçamento de pedras e entendo porque o seu trajeto é sinuoso ou possui construções com determinado tipo de arquitetura. Daí, a importância de uma cidade cuidar do seu patrimônio: ruas, monumentos, fotografias e documentos contam histórias e nos ajudam a compreender quem somos e para onde estamos indo.

Coroação de Nossa Senhora.

Na residência onde viveu o senhor Cyro de Luna, juiz que casou Elis Regina e grande escritor local, me reuni com os amigos do seu filho, Cyrinho, para ouvir histórias que ninguém mais conta. No bar do Dija, fiz amizade com o Jader e com o Cajo, dois sábios que, ao partir, criaram uma imensa lacuna na vida daqueles que o conheceram e que puderam passar horas ouvindo memórias que, um dia, viveram ou ouviram alguém contar. Naquele mesmo ambiente, tive a oportunidade de tomar uma cervejinha com o Monsenhor José, ouvir os seus causos e aventuras. Pessoas assim são cada vez mais raras de se encontrar. Aos poucos, vão deixando a linha de frente e abrindo espaço para os que chegaram em seguida. Eu que já ouvi histórias contadas pelo doutor Caponi, Orozimbo, Carlos Alberto Campos do Amaral, Chico da Maíza, Zé Gumercindo, Manuel Colchete, Haidee Cabral, meu pai e tantas outras personalidades que também colecionavam memórias, percebo que muitas recordações vão se perdendo. Aos poucos, aquelas pessoas curiosas que tiveram o interesse de ouvir as recordações dos seus antepassados vão indo embora, muitas vezes sem registrar o que aprenderam.

José Pinto Vilela, Maximiano de Lemos, José Moreira da Costa e Alfredo Carneiro.

Com as dificuldades comuns a todo jornal do interior, seguimos nessa cachaça chamada “Empório de Notícias” que, em breve, completará 17 anos. Com o apoio de algumas entidades, empresas e pessoas que compreendem a importância do registro, vamos seguindo, aos trancos e barrancos, com o objetivo de manter a chama acesa, num mundo cercado de informações rápidas, redes sociais e dancinhas de Tik Tok. Mesmo mundo em que, da noite para o dia, páginas de internet desaparecem, aplicativos deixam de funcionar e resta, apenas, aquilo que foi impresso. Enquanto for possível, seguimos com este trabalho onde o foco é sempre o cotidiano local. Costumo dizer aos articulistas: “Para falar sobre o mundo, há pessoas muito melhores do que nós. Nossa missão é relatar as memórias e notícias de nossa comunidade.” Que surjam, cada vez mais, novos contadores de histórias e apoiadores. Viva Santa Rita!

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