Um rebelde de calça curta

Leia a crônica completa e descubra como esse encontro improvável entre um menino ousado e um mestre sereno entrou para as memórias literárias do Brasil.

(Menotti Del Picchia)

Um ainda era menino e morava em Pouso Alegre. O outro, adulto, Juiz e morava em Santa Rita. Aparentemente, o encontro deles não diria absolutamente, nada. A não ser que o primeiro se tornasse um dos fundadores do Modernismo, em 1922, e o segundo produzisse algumas das obras literárias mais emblemáticas do Brasil. Leia, a seguir, como foi o encontro de Menotti Del Picchia e Godofredo Rangel, através das memórias do autor de Juca Mulato.

Quando fui de Pouso Alegre a Santa Rita do Sapucaí, visitar a família da esposa do meu irmão, Alvarina Ribeiro de Carvalho, lá exercia as funções de juiz municipal e era celebridade da terra, Godofredo Rangel, o admirável autor de “Vida Ociosa” e “Falange Gloriosa”. Meu irmão quis que eu conhecesse o romancista já famoso, integrante do “Minarete”, república de Monteiro Lobato e amigo confidente do autor do “Sítio do Picapau Amarelo”.

Godofredo recebeu-nos em seu gabinete. Eu era um garoto de calça curta e minha presença não impressionou o calmo magistrado. Para mim também, a quem então a ideia de um famoso escritor sugeria alguém que irradiasse relâmpagos pelos olhos, o bom Godofredo que, depois foi tão meu amigo, apenas me oferecia o tipo sereno do mineiro culto, desses eruditos provincianos que se integram na alta sabedoria de uma vida interior iluminada e pacata. A decepção do encontro despertou em mim, um tímido, o desejo de provocar o mestre. E eu lhe disse:

– Eu também sou poeta!

Godofredo, com os olhos pousados em mim, pediu tolerante e indulgente:

– Então recite alguma coisa.

O problema é que tenho péssima memória para reter meus versos. Nunca os recito. Quebro com lapsos a sequência das estrofes porque sofro de inibições oriundas de um estranho pudor. Parece-me ridículo um homem recitar, principalmente quando não foi dotado de arte tão responsável e difícil. Eu, porém, era mocinho e trazia ainda quentes aquelas rimas que iriam servir ao bom Godofredo, como se lhe ofe-recesse um pão saído do forno.

– Vou recitar uma poesia chamada “Religião”. – Eu disse.

Godofredo olhou-me meio assustado. Ele era protestante, por isso muito respeitoso das coisas divinas. Comecei:

“Essa deusa teogônica
Que tem, Jano bifronte,
A fronte orlada
De pureza ideal
De Santa Mônica
E de evoés de Baco.
É de um lado
Uma santa imaculada
E de outro lado
Um sátiro velhaco.

Essa primeira estrofe explodiu como uma bomba no calmo gabinete do juiz municipal. Recitei o resto da poesia que já não lembro, pois, repudiada da coleta dos poemas, vi perdido o seu orginal.

– Você escreveu isso?

Eu agora olhava com espanto para o espanto do grande escritor. Tive a impressão de que o escandalizara. Quis me justificar do que houvesse de irreverente, talvez sacrílego, na exposição do tema. Deveria explicar que fora educado num ambiente de livres pensadores e que minha imersão na vida quase clerical do colégio provocara, à minha ânsia de independência mental, uma denúncia do contraste que eu via entre a pureza de uns cresntes e o farisaísmo de outros.

Godofredo olhou para meu irmão e comentou:

– Esquisito… isso é novo.

O que ele escreveu sobre nosso encontro, nesse dia, a Monteiro Lobato – coisa que vem registrada na “Barca de Gleyre”, eu não sei. Presumo que fosse o susto que lhe pregou o contraste entre a poética daquele fedelho e a nobre arte parnasiana, então dominante no país.
Positivamente, eu já era uma revolução de calça curta.

A biografia de Menotti del Picchia

Com Graça Aranha, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e outros, Menotti participou da Semana de Arte Moderna, de 11 a 18 de fevereiro de 1922. Com Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e outros, realizou o movimento Verdeamarelo; depois, com Cassiano Ricardo e Mota Filho, chefiou o movimento cultural da Bandeira.

Além de jornalista, exerceu inúmeros cargos públicos. Foi o primeiro diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado de São Paulo; deputado estadual em duas legislaturas; membro da Constituinte do Estado e deputado federal por São Paulo, em três legislaturas. Presidiu a Associação dos Escritores Brasileiros, seção de São Paulo.

Foi poeta, jornalista, político, romancista, contista, cronista e ensaísta. Sua obra que mais se destacou foi o poema “Juca Mulato” (1917), considerado precursor do Movimento Modernista. No entanto, sua origem estética ainda está no Parnasianismo, evidente em sua poesia pela grandiloquência e floreios verbais. Em 1982, foi proclamado Príncipe dos Poetas Brasileiros, título que pertenceu, anteriormente, a Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Olegário Mariano.

(Texto extraído da obra “A Longa Viagem”, de Menotti Del Picchia)

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