Leandro Lopes e a cultura hip hop em Santa Rita do Sapucaí

Conte um pouco sobre a sua infância em Santa Rita

Sou de 1984. Minha mãe foi visitar a minha avó em Itajubá e, por acidente, acabei nascendo lá, mas passei a minha vida inteira em Santa Rita. Tive uma infância muito parecida com a de muitos meninos que cresceram em famílias pobres. Minha primeira casa foi na travessa próxima ao bar do senhor Roberto, perto da pracinha da Câmara. Foi ali que eu tive o meu primeiro contato com a Escola de Samba Azul e Branco e aquela experiência transformou a minha vida.

Dali, nos mudamos para a Rua Nova e aquele momento foi importantíssimo para a minha formação. Enquanto eu vivia lá, tive contato com o disco BAD, do Michael Jackson, de 1987. Foi então que a música fez sentido para mim, mesmo sem entender muito bem o que aquele disco queria dizer. A estética dos clipes e a capa do álbum ficaram fixadas na minha memória.

Aquele álbum o marcou pelo resto da vida?

Sim. Não é todo mundo que conhece a história daquele disco. Tudo começou com uma polêmica de que o Michael Jackson ganhou o mundo e se afastou da cultura do gueto, que foi onde ele se inspirou, nos trabalhos anteriores. O cantor percebeu que tudo o que ele produzia e que encantava o mundo partia dali e teve a preocupação de se reconectar com aquelas pessoas. Tudo o que existe naquele disco foi porque ele queria se aproximar do gueto, do povo negro e da arte periférica. Quem escuta aquele álbum percebe que ele procurou trazer sonoridades desconhecidas do grande público e esta é uma característica muito presente no som das periferias. Quando eu vi aquela estética de capa, com o Michael Jackson vestindo jaqueta preta, da mesma forma que os primeiros rappers se vestiam, minha vida mudou. O Afrika Bambaataa, por exemplo, se vestia daquela forma. As coreografias dos clipes eram feitas por membros reais das gangues. Importante lembrar que o conceito de “gangue”, em sua essência, não parte do princípio da violência, mas da proteção. Aquelas pessoas não podiam andar sozinhas pelas ruas, pois estavam expostas à violência. Era mais um conceito de “agrupamento”, levado aos EUA pelos primeiros latinos que ocuparam o país e que também sofreram preconceitos. Por este motivo, o universo daquele disco me encantou tanto.

Já na música brasileira, fui apresentado, pelo meu pai, a Tony Tornado, que havia lançado BR-3, no início da década de 1970. Meu pai, o Tião do Quita, era comparado ao cantor por seu visual e gostava muito de Soul. A primeira vez que ouvi James Brown foi com ele e aquela experiência foi muito marcante.

O seu avô, senhor Quita, sempre esteve muito envolvido com a Associação José do Patrocínio e com o movimento negro da cidade, não é?

Sim! Junto com a Maria Bonita e várias outras personalidades, foi um dos fundadores da Associação. Meu avô também ajudou a fundar a Azul e Branco e me incentivou a desfilar na escola de samba pela primeira vez, aos dois anos. Na área do tamborim, eu desfilei ao lado do Lebrinha com um pandeirinho de plástico que não fazia muito barulho para não atrapalhar a batida e não “derrubar o samba”.

Qual foi o seu primeiro contato com o movimento Hip Hop em Santa Rita?

Eu tive o privilégio de aprender com o cara que trouxe o movimento para a cidade. O nome dele é Edvaldo. Ele se mudou para Santa Rita do Sapucaí depois de ter vivido na Brasilândia, em São Paulo. Na capital paulista estavam acontecendo as primeiras manifestações de Hip Hop. Quando ele chegou aqui, começou a pesquisar, entender mais sobre a cultura e se aproximou de pessoas que tinham o mesmo interesse. Naquele ambiente estavam com ele o Levi, Fião do Rap, Paçoca e outros.

Quando eu tinha uns 10 anos, meu pai havia me colocado para trabalhar durante o dia e estudar à noite e fui para a construção civil. Três dias depois de iniciar a obra, um cara pediu emprego e pensei: “é aquele cara da televisão!” O Edvaldo tinha acabado de fazer uma propaganda de TV para a Britasul e ficou muito conhecido na região. Lembro que quando os caras apareciam no intervalo das novelas causavam um estardalhaço. Não era nada comum você ver pessoas do seu bairro aparecerem na Globo e todo mundo comentava. Eles fizeram tanto sucesso que o dono da empresa começou a patrocinar o grupo. Eles começaram a se apresentar como os “Atraentes do Rap” e eu os vi trajados como o grupo Black Street americano, em uma nova apresentação na TV. Roupa branca, luvas de ciclista, tênis de basquete… aquilo chamou muito a minha atenção. Eu comecei a entender a importância da cultura Hip Hop quando ele começou a trabalhar comigo na construção.

Ele o levou para os ensaios?

Sim! O grupo ensaiava em um terreno baldio, na subida do Bar do Bá. Os caras ficavam por ali, treinando saltos mortais no gramado e decidi que também queria ser como eles. Acontece que, naquele mesmo ano, em 1996, o meu avô foi festeiro das comemorações do dia 13 de Maio, na Associação José do Patrocínio e o Edvaldo perguntou se eu achava que eles conseguiriam se apresentar no evento.

E o senhor Quita deixou a apresentação acontecer?

O meu avô sempre foi um grande incentivador. Enquanto o meu pai era mais resistente a eu participar do movimento, meu avô já incentivava por entender do que se tratava e por ter tido pais e avós escravizados. Ele já percebia um pouco mais o que estava acontecendo em torno dessa movimentação do povo preto. Meu avô sempre foi um cara do blues, do jazz… Ele gostava de Louis Armstrong, Nat King Cole, Ella Fitzgerald, Rosetta Sister Sledge e passei a gostar desse tipo de som sentado na mesa da copa, enquanto ele comentava sobre os artistas. Foi muito fácil para o meu avô abraçar a ideia e deixar o grupo se apresentar. Ele fazia parte de um coletivo que sempre incentivou ações que fizessem as novas gerações darem continuidade aos projetos que criaram. Foi justamente nesta linha de raciocínio que ele disse ao Edvaldo que a ideia era justamente que eles ocupassem aquele espaço com o movimento que estava surgindo.

Como foi o dia da apresentação?

O meu pai não queria que eu fosse, não gostava que eu ficasse solto pelas ruas, mas o meu avô o tranquilizou dizendo que tomaria conta de mim. Quando eu vi aqueles caras com roupas iguais, dançando Break, minha vida mudou. Comecei pela dança mas, com o tempo, a parte musical falou mais alto. Quase todos os caras que entraram para o movimento Hip Hop, nos anos 90, começaram dançando, antes de cantar.

O fato é que, quando comecei a dançar, também comecei a descobrir as músicas. Foi uma fase em que a gente tinha dificuldade até de encontrar registros de áudio para ouvir.

Vocês tinham que garimpar as músicas?

Sim! E isso é uma coisa muito importante dentro da cultura Hip Hop, até por causa da marginalização que dificultava a gente a ter acesso às músicas. A cultura era marginalizada, a indústria não investia e nascia, então, uma espécie de movimento paralelo.

Qual foi o primeiro Rap que você ouviu?

Foi “Homem na Estrada”, dos Racionais. Eu tinha um vizinho que frequentava os bailes na People e colocava o som pra tocar alto. Eu lembro que gostei porque as músicas falavam do que estávamos acostumados a ver em nosso cotidiano. As letras abordavam violência doméstica e abuso do álcool e era comum a gente ver aquela massa operária deixar o trabalho, ir para o bar e, em alguns casos, bater na mulher. Aquele era um momento em que o Recanto das Margaridas ainda era novo, a droga estava chegando e, com ela, a violência. A molecada do bairro gostava de jogar bola em um campinho de terra que existia onde hoje é o ginásio Jacques Bressler. Meu pai não deixava eu ir até lá porque a violência começava a chegar ao bairro. Assim como nas músicas, aquela realidade também acontecia em nosso espaço e comecei a me interessar pelas letras, mesmo antes de saber o que era Rap. Foi o próprio Edvaldo quem me explicou que os Racionais MCs estavam debatendo toda aquela situação e que era importante conhecer tal realidade.

O Edvaldo abriu a sua cabeça?

Sim. Ele gravou uma fita para mim com músicas nacionais de um lado e internacionais do outro. O meu pai não deixava eu ouvir estas músicas no som dele e eu tive que juntar dinheiro e comprar um micro system CCE.

Como você migrou da dança para a composição?

Passada essa fase de começar a dançar, a gente ainda não tinha ido a um baile. Isso só foi acontecer no início de 2000. Antes de terminar o ano anterior, dois discos muito importantes foram lançados: “Seja como for” do Xis e “Versos Sangrentos”, do Facção Central. Ambos eram muito politizados e discutiam a realidade da sociedade brasileira. Nós estávamos eufóricos com aquelas músicas e já tínhamos um acesso maior aos trabalhos por conta do surgimento do CD. Um dia, chegou a notícia de que o Nelson Triunfo e a Funk Cia iriam se apresentar no 18, casa de shows em Pouso Alegre. Na data do show, o evento estava marcado para cinco da tarde e chegamos às duas! Ainda não tinha ninguém e ficamos por ali, até que apareceu o Nelson Triunfo. Era um dos caras mais importantes do cenário e estava ali na minha frente! Nunca pensei que pudesse vê-lo de perto, muito menos pegar na sua mão. Naquele dia, eu tive a oportunidade de ver o Edvaldo e o Fião dançarem com ele e com a Funk Cia inteira! Até então, achava que eles eram de outro planeta! Aquele evento foi um choque de realidade porque eu também descobri que havia grupos em Pouso Alegre que se apresentavam na região. Um deles, chamado “Visão Geral”, tinha como integrante o Serginho, irmão do Edvaldo. Dogueto, Paula do Prado e Néia também eram integrantes. Ali eu pensei: “Acho que dá pra gente fazer isso também! Se os vizinhos conseguem, a gente consegue!”

Quando montaram um grupo?

O Paçoca trabalhava na Tok Som, já ia muito a São Paulo fazer compras para a loja e começou a comprar coletâneas de discos instrumentais para fazer os beats que as pessoas usavam para cantar em cima. Nós compramos três discos e viemos para Santa Rita.

Mal chegamos aqui na cidade, fomos direto para a casa do Humberto, no alto da Rua Nova. Lá, eu, ele e o Luiz Carlos (conhecido como Vulgo Negão) escrevemos as nossas primeiras músicas. Com as letras prontas, chegava a hora de nos apresentarmos e a primeira oportunidade surgiu no bairro da Nova Cidade, em uma festa da igreja São José Operário. A turma abraçou, começou a correr a notícia de que uns caras estavam cantando Hip Hop autoral e fomos nos apresentar em uma nova festa, no dia 13 de maio. O Jamil com a dona Zita ficaram sabendo do nosso grupo e nos convidaram. Naquela oportunidade, o pessoal da Rua Nova também começou a gostar do nosso trabalho. Logo depois, a turma da igreja São José Operário comentou com o pessoal da igreja Nossa Senhora de Fátima e nós nos apresentamos na festa deles também. De lá, fomos cantar no asilo e consideramos aquela apresentação muito importante porque o nosso som chegou à rapaziada dos bairros no entorno. Isso culminou na Festa de Santa Rita 2006, em frente ao campo.

Como foi esta apresentação?

O objetivo inicial era nos oferecermos para nos apresentarmos em um show gratuito no palco principal. O pessoal da festa não quis deixar a gente se apresentar e o Luiz Carlos teve uma ideia: “E se a gente se inscrevesse para o show de calouros?” Para você ter ideia da vontade que ele tinha de se apresentar naquele evento, eu trabalhava na Nova Cidade e o Luiz foi a pé, da Rua Nova até lá, para dizer que iria fazer a inscrição. Ele voltou a pé para o centro, realizou a inscrição, retornou ao Recanto para me avisar que tinha dado certo e, de lá, foi correndo até a Rua Nova! A gente dava o sangue pela parada! Percebendo o esforço dele, decidi incentivá-lo a cantarmos uma música de sua autoria. Ele cantou “Discurso contundente”, tinha muita gente nos apoiando e fomos classificados. Na segunda apresentação, cantamos uma composição minha. Era um momento em que estavam ocorrendo altos índices de criminalidade, muitos assassinatos no Recanto e a música era sobre isso. Para você ter uma ideia, um dia o pessoal estava jogando bola no campinho, chegaram uns caras e assassinaram um sujeito com vinte e tantas facadas, no meio de todo mundo! Teve gente que viu a cena e desmaiou. Quem morava em frente, vendeu a casa e foi embora. A música era sobre aquela realidade, chamava “Teu estilo é gangsta” e nos apresentamos com ela. Foi naquele show da Festa de Santa Rita que nós nos sentimos exatamente como os caras que sempre admiramos.

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