Felipe Elias e a imigração libanesa em Santa Rita do Sapucaí

Da canastra dos mascates ao coração da cidade: a história de Felipe Elias Kallás e dos imigrantes libaneses que ajudaram a tecer o comércio e a cultura de Santa Rita do Sapucaí.

(Carlos Romero Carneiro)

No final do século XIX e início do XX, o mundo assistia a grandes movimentos migratórios. No Oriente Médio, o domínio turco sobre os povos árabes sufocava economias locais e culturas milenares. No Líbano, um país fértil, mas com ciclos agrícolas curtos devido aos invernos rigorosos, as pessoas buscavam uma vida melhor fora de sua terra. Beirute, centro financeiro e cultural da região, transformou-se numa verdadeira “porta de saída” rumo ao Novo Mundo.

Enquanto os Estados Unidos colhiam os frutos do segundo ciclo da Revolução Industrial, o Brasil também se mostrava promissor — especialmente o estado de São Paulo, onde o comércio florescia. Os libaneses, descendentes dos fenícios e herdeiros de uma tradição milenar no comércio, viam no Brasil a chance de recomeçar. E foi assim que muitos deles chegaram por aqui, trazendo na bagagem a coragem e a esperança.

Assad Baracat: o primeiro elo com Santa Rita do Sapucaí

Entre esses pioneiros, destacou-se Assad Baracat, o primeiro libanês a chegar a Santa Rita do Sapucaí. Com seu olhar atento para as oportunidades, reconheceu rapidamente o potencial da cidade. Na ausência de um comércio local estruturado, ele e outros mascates libaneses eram calorosamente recebidos pelos coronéis e famílias locais, que abriam suas casas para conhecer as novidades que traziam: tecidos, joias, perfumes e utensílios domésticos, tudo cuidadosamente arrumado em canastras de madeira. Assad não permaneceu na cidade, mas seu comércio itinerante pela região abriu caminho para outros conterrâneos que aqui fincaram raízes. Entre eles, estava Felipe Elias Kallás.

Felipe Elias Kallás: de mascate a comerciante respeitado

Com o sobrenome que em árabe deriva da palavra “cal”, simbolizando a brancura e a pureza, Felipe Elias chegou ao Brasil como tantos outros: jovem, sonhador e sem saber uma palavra em português. A intuição era sua principal ferramenta. Aprendeu o ofício com Assad, enchendo a canastra de casimiras inglesas, linhos holandeses, bijuterias, cutelaria, joias e perfumes. Embarcava no trem da Rede Mineira de Viação rumo ao Sul de Minas, até que, ao chegar em Santa Rita, apaixonou-se pela cidade e por Maria Jorge Kallás, também libanesa.

Casaram-se e tiveram quatro filhos. Na tradicional Rua da Ponte, Felipe estabeleceu seu comércio: a Casa Vênus, batizada em homenagem à deusa do amor, já que seu principal ramo eram os enxovais de casamento.

Casa Vênus: um centro de encontros e negócios

A Casa Vênus tornou-se mais que um ponto comercial — era um lugar de acolhida para outros mascates libaneses que chegavam à cidade. Muitos hospedavam-se no lendário Hotel Melo, de onde Orestes, com sua inseparável carrocinha verde, levava as malas até a loja de Felipe. Assim, a Casa Vênus virou um elo entre o velho e o novo mundo, entre o passado de tradições libanesas e o futuro promissor em solo brasileiro.

Maria Kallás, esposa e parceira de negócios, desempenhava papel fundamental: conhecia os gostos das freguesas, ajudava nas compras e nos relacionamentos com a comunidade. Entre suas clientes mais fiéis estava Mariquinha do Capitão, figura elegante e exigente que confiava à Casa Vênus as encomendas de toda a família.

A história de Felipe se confunde com a de outras famílias libanesas que escolheram Santa Rita para viver e empreender — Rezeck, Anderi, Calixto, Sarkis, Murad — todas com trajetórias de trabalho duro, integração e contribuição social. Por lidarem com dinheiro, muitas vezes esses homens eram vistos como apegados ao materialismo, mas acabavam quebrando esse preconceito por fazerem questão de estudar seus filhos e torná-los imprescindíveis à comunidade.

A paixão pela caça

Fora do comércio, Felipe cultivava uma paixão: a caça. Com responsabilidade e respeito à natureza, caçava apenas o necessário para consumo. Sua loja tornou-se também um ponto de encontro dos caçadores da cidade. Lá, organizava-se um pequeno clube onde histórias e proezas (muitas ligeiramente aumentadas) eram contadas. Oswaldo e Décio Guerzoni, Astolpho Dias, Tenente Aníbal, Domingos e Aristeu Caputo eram alguns dos frequentadores. Os nomes das espingardas — Magriner, Remington, Beretta — eram tão falados quanto os dos caçadores.

Às margens do Rio Sapucaí, quando o cão de caça “amarrava” — isto é, travava a postura ao sentir o cheiro da codorna — era sinal de que a ave estava próxima. Era ali, naquele instante de silêncio tenso, que o caçador batia o pé no chão, o cão disparava e o voo da ave era interrompido por um único disparo.

Quando não havia juros

Embora vendesse armas e equipamentos de caça, era entre os meses de outubro e novembro — durante a negociação das safras — que a Casa Vênus registrava seu período mais próspero. Era o auge do ciclo do café, quando a cidade fervilhava de negócios e oportunidades. Nessa época, Felipe contava com o olhar sensível e estratégico de sua esposa, Maria Kallás, que, com rara intuição, procurava conhecer os gostos das freguesas antes mesmo de realizar os pedidos.

Entre suas clientes mais elegantes estava Mariquinha do Capitão, conhecida por seus vestidos rendados e refinado senso estético. Sempre confiava a Maria a tarefa de encomendar as roupas e utensílios para toda a família, numa relação construída com base na confiança, no bom gosto e na cordialidade.

Naquela Santa Rita em transformação, três figuras se destacavam na vida social e econômica da cidade: o viajante bem-sucedido, o bancário e o corretor de café. Homens como Felipe Elias Kallás logo se integraram a esse cenário, aproximando-se das famílias tradicionais com respeito e generosidade. Com o tempo, tornaram-se parte indissociável da identidade santarritense.


Esta matéria é baseada nos relatos do senhor Ely Kallás, filho de Felipe Elias Kallás, a quem expressamos nosso agradecimento pela memória compartilhada.

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