Daltinho: o guardião dos portões e das memórias santa-ritenses

Em Santa Rita do Sapucaí, cidade onde — até pouco tempo — todo mundo se conhecia pelo nome ou pelos feitos, uma figura curiosa marcou a memória de gerações: Dalton Luiz de Mendonça e Dias, conhecido como Daltinho.

A foto ao lado mostra um grupo de senhores em frente ao bar Bife de Ouro, localizado à praça Santa Rita (atual edifício Mendonça). Ao observarmos a imagem com atenção, notamos que há um jovem à direita, em pé, vestido com um conjunto branco, que despertou comoção em nossa página no Facebook.

Memória Inesquecível

Quem viveu em Santa Rita entre os anos 1960 e 1970, certamente se lembra de Daltinho. De memória prodigiosa, conhecia o nome de quase todos os moradores da cidade — e mais do que isso: sabia de cor as datas de nascimento de todos eles. Bastava alguém dizer um nome para que ele respondesse com a data de aniversário. Ou o contrário: ouvia a data, e dizia os nomes dos aniversariantes. Um verdadeiro “computador humano”, como muitos diziam. “Interessante demais rever o Daltinho! Sempre fechava os portões e sabia a data de nascimento de todos! Tinha uma memória invejável”, comentou Cláudia Schmidt.

Um cotidiano especial

Daltinho era presença diária em muitos lares. Cleuza Costa Mendonça se recorda com carinho: “Todos os dias o Dalton ia tomar cafezinho da tarde na casa de meus pais, na Av. Delfim Moreira”. Eunice Ribeiro também se lembra: “Ele fechava o portão de minha casa”.

Espectro Autista

Naquela época, o autismo ainda era pouco conhecido, especialmente em cidades do interior. Hoje, é possível reconhecer em Daltinho vários traços desse espectro: ele tinha comportamentos repetitivos, extrema sensibilidade a mudanças no ambiente, hipersensibilidade ao toque e uma memória fora do comum. Certa vez, colocaram um tapete novo em sua casa e ele simplesmente se recusava a pisar nele — como se o objeto não fizesse parte do mundo que projetou em sua mente. O mesmo aconteceu com uma porta que foi construída após o seu nascimento: Dalton jamais passou por ela, pois não a reconhecia como um caminho a ser percorrido. Além de saber de cor os nomes e datas de nascimento, também memorizou um manual técnico de válvulas que estudantes do Inatel lhe deram. Impressionados com sua capacidade, os alunos viam em Daltinho uma mente extraordinária, mesmo que ainda incompreendida por muitos.

Organizando o mundo

Fechar portões era mais que uma mania, era uma missão. “Nenhum portão ficava aberto”, lembrou Eliana Vilela. Isanira Costa também relembrou um episódio curioso: “Uma vez eu estava entrando na casa do meu avô ali na praça e ele queria fechar o portão de qualquer jeito”. Daltinho andava pela cidade com o olhar atento e o gesto firme, cuidando do que, para ele, fazia total sentido. Pedro Peixoto, ao comentar a fotografia, resumiu o garoto: “Daltinho, autista e de pouca visão, tinha bom coração. Era sempre muito atencioso e um ser iluminado.”

Afeto coletivo

Muito mais do que um menino de hábitos peculiares, Daltinho conquistou o coração da cidade com sua originalidade, elegância e simplicidade. “Ele era hiper inteligente. A molecada zoava ele, às vezes de maneira agressiva e isso me incomodava bastante”, escreveu o leitor, Daniel M. Costa. A leitora Ligia Magalhães também compartilhou alguns detalhes familiares: “Dalton era irmão da dona Regina (esposa do Dr. Luis Rennó Mendes), dona Aída Dias e do Marcos Flávio Dias, que trabalhava no Cartório de Registro”. Era neste mesmo cartório que Dalton decorava nomes e datas. A elegância também era marca registrada do rapazinho: Dalton carregava sempre o seu inseparável guarda-chuva — um símbolo que todos associam a ele. “Faltou nesta foto o guarda-chuva que sempre o acompanhava”, brincou Maria Lúcia Toledo.

Lembrança saudosa
Daltinho se foi ainda jovem, como relatou Myrian de Toledo, mas deixou uma marca profunda. “Era um espírito de luz! Lembro dele muito!”, escreveu Gê Rennó.

Detalhes da fotografia

Na imagem produzida por Róssio de Marchi, ao lado de Daltinho, aparecem figuras conhecidas na história local, como Clóvis Amorim, José Pinto de Almeida, Hilton, Osvaldo e Clarivaldo. A cena mostra o grupo reunido ao redor de uma mesa na entrada do bar, bebendo cerveja — retrato típico das tardes boêmias de Santa Rita.

Entre tantos senhores bem vestidos, no entanto, a figura que mais tocou a comunidade ao revisitar essa memória foi, sem dúvida, Dalton — o menino que ficou gravado na memória local pela maneira diferente com que encarava a vida e se relacionava com as pessoas.

Relembrar Daltinho é mais do que revisitar a história de um garoto peculiar — é retornar a um tempo em que a cidade era mais silenciosa, os vínculos mais próximos e a convivência mais singela. Sua presença, com o terninho bem alinhado, o guarda-chuva nas mãos e a mente repleta de datas e nomes, virou símbolo de uma Santa Rita que sabia acolher, ainda que sem entender completamente. Em tempos de pressa e esquecimento, a figura do menino nos ensina sobre afeto, respeito às diferenças e sobre a beleza contida na simplicidade das pessoas. Ele partiu cedo, mas permanece inteiro nas lembranças de quem teve a sorte de cruzar o seu caminho, enquanto caminhava apressado (e atarefado) pelas ruas. E assim, Dalton Dias segue, para sempre, fechando portões — e abrindo memórias. É o retrato de um outro tempo, de uma Santa Rita distante, mas calorosa e feliz.

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