O Santa-ritense que testemunhou a história

Você verá, a seguir, os relatos de um santa-ritense centenário que viveu na região por volta da década de 50. Através de depoimentos cheios de minúcias,
saberá como aconteceram alguns fatos, até então, pouco conhecidos.

Quando me disseram que existia em Pouso Alegre um homem de 104 anos, lúcido e firme, cheguei a duvidar. Acostumado com o espetáculo diuturno da queda da árvore humana antes de ter ultrapassado meio século de existência, era de ficar espantado com a sobrevivência de uma criatura que já havia dobrado uma centena de anos e que se mantinha de pé, afrontando a lei sancionada pelos trópicos.

O São Tomé que vive dentro de nós impeliu-me à procura do Matusalém. E o toquei e o vi com estes olhos que a terra um dia hão de comer.

Camilo Antonio Felizardo

Preto. Nascido em Santa Rita do Sapucaí. Filho de africanos, da costa da África, vieram seus pais num daqueles cargueiros humanos que enchiam as noites de gemidos e angústias, cujos ecos existem vivos e terríveis nas estrofes imortais do vate baiano.
Carapinha branquinha como algodão. Olhos com a bruma seca do tempo, gastos de tanto uso. Rosto liso, sem uma ruga, como se estivesse vivendo uma outra infância. O cinema retrospectivo da memória funcionando perfeitamente, numa projeção clara, andamento regulado, sem um tropeço ou falha. As palavras lhe saem da boca centenária com a mesma facilidade com que brotam os sons de cordas vocais tangidas pelo vigor da idade. Camilo Antonio Felizardo tem 104 anos de verdade. No confronto das datas e dos fatos nos convencemos da sua longevidade.

Padre Zé Bento

“O Padre José Bento era um rapagão bonito e desempenado, amigo de toda gente, trabalhador e piedoso. Gostava de tratar a terra, interessando-se sempre pelas plantações. Possuía um sitio perto da cidade e sempre ia vê-lo, montado no seu cavalo fogoso.” – contou Camilo.

-Me lembro do Padre Zé Bento, montado no seu alazão, chamando a atenção de todo mundo. O Padre era muito importante.

O Assassinato

Camilo lembrou como foi a morte do Senador José Bento:
“Os três irmãos eram gente rústica, abrutalhada, pouco amiga da paz. Tramaram a morte do padre e, numa tarde, quando o sacerdote ia pro sítio, atiraram nele de tocaia. Deixaram o corpo estendido na estrada e desapareceram.

Baltazar foi morto pela polícia, em Santa Rita do Sapucaí, quando atravessava a ponte. Dionisio fugiu para a província de São Paulo e ficou morando lá. Um dia, brigou com a mulher e disse que ia fazer com ela o que tinha feito com o padre em Minas. A polícia, instigada pela mulher, descobre a coisa e recambia o Dionisio para cá. O dia da chegada do prisioneiro foi tal qual um dia de festa. Toda gente queria ver o homem que tinha matado o padre-senador. E o homem que havia assassinado a figura mais importante da cidade voltava velhinho, doente, que dava pena. Dionisio morreu poucos meses depois.

Dr. Lisboa- “Arma Santa…”

Dos médicos que clinicavam na região, Camilo lembra de dois: Dr. José Antonio Freitas Lisboa e Dr. Silviano Brandão.

-Doutô Lisboa era uma arma santa, meu filho. Eu passava quasi que o dia inteirinho na casa dele, brincando com o seu filho Lulu (Luiz Lisboa, mais tarde senador).

E Camilo fala, demoradamente, sobre a bondade do Dr. Lisboa, sempre pronto a levar o refrigério da sua ciência e da sua bondade aos doentes e aos sofredores.
-Me dissero que arrancaram o nome do doutô Lisboa da praça de Pouso Alegre e puzero o nome de outro. Isso é uma ingratidão!

A voz do preto velho tem um tom de protesto. É que o Camilo não consente que desrespeitem a memória do seu amigo. Volta-lhe a calma quando lhe digo que a Câmara colocou de novo o nome do Dr. Lisboa na Avenida.
-Bem feito…

O Dr. Silviano Brandão era também um bom moço, caridoso, prestativo. Mas a política absorveu todas as atividades e o enleiou no seu rodamoinho.

-Dotô Sirviano viro senadô, iguar Padre Zé Bento. Dr. Sirviano fez roça pros negro sê arforriado. A negrada achou bão, mas nêgo véio num fico munto satisfeito, não…
Um sorriso velhaco enrugou a pele esticada do preto centenário.

Mons. José Paulino

Camilo Felizardo tem palavras de saudade para a memória do Mons. José Paulino. Tanta bondade existia naquela alma que todos o tinham como santo.
-Padre Zé Paulino era tão santo que D. Néri mandô ele pro Ceará, para indireitá aquele povo que era muito heréje e que tava morrendo de fome. E o padre custô mas botô as coisas de lá no eixo…

Tempos depois, o Mons. José Paulino voltou do Ceará, acabado pela moléstia que não demorou muito a levá-lo dentre os vivos.

Mudanças na cidade

Mudou muito a fisionomia da cidade. Não é a mesma dos tempos da mocidade do Camilo Felizardo:

-A cidade de hoje pode tá mais importante, mas nunca que é mais bonita que a outra. Tá carçada de pedra, cheia de barúio de caminhão, otomóve e charrete, mas os home são diferente pra piór… Naquele tempo, as portas das casa tava sempre escancarada, nêgo veio ia até a cozinha, tomava seu cafezinho, picava uma lenha, dava um dedo de prosa e saia pelo mesmo lugá que entrô. Os home oiava a gente cum amizade. Hoje, cruz credo, a gente vê a ambição e a mardade nos óio deles! Onde é que a gente encontra hoje uma bondade como a do Dotô Lisboa, do D. Néri, do Padre Zé Paulino?
E, meneando a cabeça…

-A cidade tá importante e mais barulhenta, num hái dúvida, mas nunca que é mais bonita.
Lá se foi o Camilo Felizardo, arrastando o fardo de seus 104 anos de existência. Ele conservou sua paixão pela cidade simples, sem artifícios, só com os enfeites da própria natureza. Os homens do seu tempo traziam as casas e os corações abertos. Os de hoje trazem a maldade e a ambição impressas nos olhos duros.

(Reportagem extraída do Jornal “A Cidade” 19/10/1948)

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