Uma experiência que transformou a minha infância

(Por Carlos Romero Carneiro)

Foi naquele início dos anos 80 que tive contato com uma experiência que mudaria, para sempre, a minha vida. Chegou à escola uma orientadora nova. Era negra, esguia, de traços finos e muito delicados, arrematados por uma marca saliente na maçã do rosto. Ela entrou na minha sala com um saco de veludo vermelho debaixo do braço e disse que ali dentro havia um amiguinho. Eu, desde sempre, era curioso pra cacete e fiquei louco para saber do que se tratava. Devia ser um brinquedo ou um jogo educativo. Nada muito interessante. Pois a mulher definiu uma ordem de sorteio. Uma vez por semana, a criança escolhida deveria levar a sacola para casa e trazer de volta, na segunda-feira seguinte, para satisfazer à curiosidade de outro otário.

Eu fui o último a ser sorteado e, pior do que isso, ninguém queria me contar o que havia dentro daquela merda. E lá para o fim do ano, chegou — enfim — a minha vez, quando a história já havia perdido a graça. Todo mundo, com exceção de mim, conhecia o segredo daquele saco ensebado. A embalagem não pesava muito, mas não descobri o que continha nela porque o tecido era opaco e a orientadora forrou com crepom para dar volume. Vigarista. Mal cheguei ao portão, desatei o laço do pacote, enfiei a mão para tatear o recheio e veio a decepção: “Puta que pariu! É um livro!” E levei o tal amiguinho para casa, contrariado.

Aquilo ficou em cima da mesa por alguns dias, até que resolvi folhear. Mas o tal livretinho não era chato como o “Barquinho Amarelo” e as desventuras de três pirralhos tentando cuidar dos ovos de uma galinha feia. Era a história de um moleque endiabrado, que soltava fogo pelas ventas, tinha macaquinhos na cabeça e pernas que abraçavam o mundo. Caramba! Aquele menino era que nem eu! Eu li, reli, mostrei aos meus amigos e quis ter umas mil namoradas. Também me emocionei quando ele cresceu. Mas foi um choro de alegria, quase uma despedida saudosa, já que ele se tornou um cara legal.

Eu quis ser como o Maluquinho e, para começar, me transformei em leitor. E, toda segunda-feira, corria à biblioteca municipal, pegava dois livros e os devolvia na semana seguinte. Não me atrevia a requisitar os exemplares da escola. A atendente era entojada, detestava crianças e sempre colocava uns quatro ou cinco livros na entrada para escolhermos um. Só porcaria… Nenhum livro me lembrava “O Menino Maluquinho”. Cheguei a encontrar o tal “Marcelo, marmelo, martelo” e a “A operação do tio Onofre”, parentes distantes do meu herói, mas foram raridades. Acho que, até hoje, tento conhecer outros livros que possam me encantar tanto quanto aquela viagem do Ziraldo.

Por poucas vezes tal sintonia se repetiria com tamanha potência. Quem sabe tenha sentido emoção parecida em “O velho e o mar” ou em “Cem anos de solidão”, mas essas obras não falavam tanto de mim. Senti algo semelhante em um romance do Sabino. Quem sabe, em “Feliz ano velho”, nas “Aventuras de Tibicuera” ou nas comédias de Monicelli. Se hoje você lê estas linhas, saiba que é tudo por causa daquela experiência literária.

(Trecho extraído da obra “Quarentena aos Quarenta, de Carlos Romero Carneiro)

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