Colunistas

Um parto de viagem, na serra do Balaio

(Por Cônego Augusto José de Carvalho)

Depois de uma horrível estrada lamacenta, da cidade à Capituva, ainda no escuro e debaixo de um aguaceiro diluviano, que dava vontade da gente saltar do automóvel e seguir a pé, enfim chegamos à fazenda do tal Custodinho Ribeiro.

Acabava de conhecer, naquela hora avançada da noite, um homem de voz cavernosa e rouca, fazendeiro na baixada próxima ao Balaio e que seria um dos melhores amigos em Santa Rita do Sapucaí. Entramos numa fazenda secular, enquanto lá no ranchão dos arreios o bom fazendeiro e seu capataz preparavam as cavalgaduras que nos levariam ao alto da serra.

Lá dentro do casarão do Custodinho ou da Fazenda do Balaio, como era conhecida, a sua digníssima esposa, acompanhada de uma preta que se chamava Luzia, com muita solicitude, nos serviram do que havia numa lauta mesa preparada para receber o padre e o doutor. O Dr. Antenor bebeu leite, comeu biscoitos, broas e bolachas, depois de ter na entrada solvido uma talagada de pinga da casa (alambique da fazenda do Custodinho). Ele me disse: – Toma, padre! Isso evita a pneumonia…”

Ele bebeu na porta e, lá dentro da casa, comeu broa, biscoitos, bolachas e tomou leite e café, e não sei mais o que… Eu, porém, coitado do padre naqueles tempos, olhei apenas para o relógio, agradeci à dona da casa e à Luzia, dizendo-lhes: – Não posso. Preciso guardar o jejum para a Missa. E percebi um sorriso do irreverente doutor, mas compensado com uma expressão de ternura e dó, tanto da esposa do Custodinho como da velha Luzia. “Que pena.” – me disse a dona da casa. “Mas Deus recompensará vancê, senhor padre.” – me disse a bondosa preta.

Eu, portanto, graças ao jejum daqueles tempos (que chegava mesmo às raiz do absurdo), passei pela fazenda do Custodinho fumando como um trem de ferro e secando que nem tijolo de olaria, só porque era sábado para domingo e os fiéis precisavam ouvir a missa impossível de acontecer sem o jejum do padre.

E, para mais me atormentar naquela hora, o Dr. Antenor disse: “Come como um padre!” E respondi de cara: “E o senhor comeu como um doutor, para não dizer que comeu como um burro!”

Montados e acompanhados do fazendeiro, tocamos a subir o morro em direção ao local do parto. Não se via nada no trajeto. Tudo era escuridão pela alta madrugada naquele sertão serrano e enchuvarado. Mas chegamos, porque o Custodinho nos disse: “É ali…” Só não ficamos como pintos molhados, porque o fazendeiro nos havia prevenido ponches e capas de boiadeiro, que nos resguardassem da chuvarada que caía sobre nós.

Enxergamos uma luzinha caminhando e abrindo as trevas, rumo à porteira do curral, por onde devíamos entrar. Era sinal certo de que Marcílio de Magalhães já havia percebido o trotear dos animais, bem antes da nossa entrada no seu sitio.

Na soleira da porta da fazendinha, apeamos e o dono da casa, que então já voltava da porteira, nos recebeu. Cumprimentou-me com um “Louvado seja Nosso Senhor Jesus.” Ao Custodinho, com um “Como vai?”; ao compadre e ao Dr. Antenor, com uma queixa de quem realmente estava preocupado com sua mulher e o filho que devia nascer: “Doutor, ela está mal. Pediu o Padre e o senhor…”

O Dr. Antenor entrou no quarto do casal, enquanto eu aguardava de fora. Saindo rapidamente, ele me disse: “Vai, padre, enquanto eu preparo algumas coisas.” E disse, jocosamente: “Essas mulheres acreditam mais no padre do que no doutor…”

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