Colunistas

Soldado velho de guerra

(Maria José Carvalho Vianna)

Festa supimpa. Festa “a la” Santa Rita. Comes e bebes da Maria Bonita e, para arrematar, um lindo bolo, sem defeito e apetitoso demais. Era lá na casa do Dr. Arlete. Quem é que não se lembra? Quem bancava a festa era o Tiro de Guerra sob o comando do instrutor (bravo mesmo), o sargento Léo. Naquele período de guerra mundial, o Tiro estava em evidência (evitava-se a convocação imediata) e levava o número 210. Aliás, ainda não tinha chegado a este número. Funcionava como EIM 170, anexo ao de Itajubá.

E o ano? Lá pelos meados de 1941. Faz muito tempo mesmo, mas para quem participou do grupo de atiradores, parece que foi ontem. Mantinha o Tiro um grupo de escoteiros e aí estava o motivo da festa: entrega de medalhas e troféus aos escoteiros mirins.

Todos estavam fardados (e esta farda dava muito cartaz aos jovens da terra). Atiradores e escoteiros se misturavam alegremente junto aos convidados da sociedade da época. O prefeito, o pároco e o instrutor se instalavam na sala da casa do casal Arlete e Irene, grandes patrocinadores das festas da cidade, magníficos anfitriões. Salgados gostosos regados a guaraná. Naquele tempo ainda não havia a Coca-Cola. Doces caprichados, tudo devorado em algum tempo. A conversa era animada inicialmente, mas, depois que os comes deixaram de ser oferecidos, voltaram as vistas para o grande bolo em cima da mesa. Engraçado é que não se via uma faca ou mesmo uma serrinha para cortar o bolo, nem guardanapos, nem sequer pratos e garfos.

Esperava-se alguma cerimônia? Provavelmente não, uma vez que a madrinha do Tiro (Zinita) ali estava, toda bonita, desempenhando orgulhosa o seu reinado. Na verdade, todos neste momento namoravam o bolo, ali inerte, esperando para ser devorado. Foi aí que um soldado muito inventivo, 29, meio metido por ser o rei do monte e desmonte do fuzil (29 segundos com os olhos vendados) teve uma de suas ideias. “Soldado velho de guerra não se aperta à toa” (ensinamento do sargento Léo). Não há facas? Mas temos um copo de guaraná vazio nas mãos. Para quê? Mais do que depressa comprime a boca do copo numa beirada do bolo e traz vitoriosamente um naco apetitoso.

Imaginem a vitória… Os outros todos se preparavam para imitar-lhe o gesto, quando o soldado 48 interrompe a festa. “Vocês estão doidos? Não era para cortar o bolo não. Que falta de educação!” Foi então que jogou um copo de guaraná na cara do saliente 29 que já comia gulosamente o seu naco, cobiçado e delicioso. Em represália, recebeu o 48 o troco, um pedaço do monumento em plena cara. E não ficou nisto. Tumulto geral! O sargento que conversava socialmente corre e procura impor a disciplina militar na sua tropa tumultuada. Ordens e contra ordens fazem os ânimos serenarem. Seguiu-se a apuração dos fatos. Pela gravidade temia o pior: expulsão! Imaginem o aperto dos atiradores (poderiam seguir diretamente para o corpo de tropa). O resultado? Souberam no dia seguinte. Receberam os dois brigões suspensão por 10 dias, levando-se em conta que ambos eram excelentes atiradores. Afinal, de quem foi a culpa?

As famílias tomaram partido e ficaram estremecidas. O 29 que tinha um tio com hotel em São Lourenço recebeu (indevidamente?) as melhores férias de sua vida. Uma estação de águas por 10 dias na vizinha cidade. E de graça! Da reação do 48 não tive notícias. Na verdade poderia ter perguntado a ele, pois o conheci há pouco tempo.

O episódio passou e não teria maior importância, se nós não quiséssemos gravar nas memórias do Tiro de Guerra de Santa Rita alguma historinha pitoresca. Mas essa história precisa de um final e o terá.
Passaram-se 47 anos… A vida joga a gente como peteca. Somos atirados para onde o vento do destino nos leva. O 29 foi para a capital do Estado estudar, para a capital do Rio trabalhar, para a capital do Rio Grande do Sul para trazer um gauchinho de lá e regressou aportando em porto seguro em sua terrinha natal, a cidade de Santa Rita do Sapucaí. O Vale da Eletrônica. O 48 mudou-se para Belo Horizonte. É o que sabemos.

Depois de uma cerimônia religiosa de casamento, eis que se encontram no adro da matriz. Mal se reconheceram. O tempo realmente faz muitos estragos…Eram agora dois senhores respeitáveis. Confraternizaram-se acanhadamente. Neste episódio ficou, entretanto, uma incógnita. Por que será que o bolo não deveria ser cortado? Outra coisa: essa história que aí está é a versão do 29.
Qual será a versão do 48? Sei que ele lerá em pouco esta crônica. Será pedir muito a um soldado velho de guerra que não se aperta por qualquer coisa, manifestar-se sobre o episódio?

(Publicado em O Correio em 31 de agosto de 1988)

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