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Santa-ritense treinado pela legião estrangeira combate na guerra da Ucrânia

(Por Carlos Romero Carneiro)

Abrigado em uma casa abandonada na região de Zaporizhzhia, próxima à fronteira com a Rússia, Patrick José Gonçalves atendeu à minha chamada. Do outro lado da tela, vi um jovem brasileiro nascido na zona rural de Minas Gerais, que agora se prepara para liderar um grupo de combate formado por latinos no front da guerra da Ucrânia. Com a voz baixa e pausada de quem já encarou a morte, ele narrou a sua trajetória, descreveu o caos no campo de batalha e revelou os seus planos para o futuro.

Infância pobre no sul de Minas

Patrick é nascido e criado em Santa Rita do Sapucaí, cidade localizada no sul de Minas Gerais e conhecida por sua vocação tecnológica. Filho de agricultor, viveu a infância em um sítio, até se mudar para o bairro Marcos Baracat, na periferia da cidade. Foi para aquele mesmo bairro que muitas famílias se mudaram, nos anos 80, quando as linhas de produção tiraram famílias das colheitas de café, em busca de melhores condições. “Meu pai tinha uns gadinhos, vacas e bezerros e eu vivia ali, entre a Nova Cidade e o terreno do novo Fórum. Sou filho de faxineira e de trabalhador rural, de origem pobre, mas tenho muita gratidão por tudo o que aprendi com eles. Se hoje estou aqui, na Ucrânia, agradeço a Deus e aos meus pais por tudo o que me deram.”

Na infância, Patrick estudou na Escola Municipal José Ribeiro de Carvalho. Matriculou-se, em seguida, na Escola Estadual Sinhá Moreira, onde concluiu o ensino médio. Desde muito cedo aprendeu que recusar serviço não era opção e abraçou qualquer oportunidade que encontrasse pelo caminho. Chegou a trabalhar com o pai na lavoura, atuou como servente de pedreiro e ocupou as linhas de montagem de várias empresas. “Passei pela MCM, pela DL e fui instrutor de academia. Eu não me sentia realizado e sabia que aquilo não era vida. Pensava em encontrar algo melhor.”

Incentivado pelos pais e fascinado por militaria, era seu desejo integrar as forças armadas em busca de uma profissão e, aos dezoito anos, se alistou no Grupo de Artilharia de Campanha de Pouso Alegre (14º GAC), cidade localizada a 25Km de Santa Rita do Sapucaí. Durante um ano e meio, Patrick atuou como soldado e se identificou com a vida na caserna. “Eu descobri que aquela era a vida que eu queria. Saí de uma família de pais analfabetos, trabalhei duro, vivi em um bairro que lida com a criminalidade e fiz a minha escolha.”

A legião estrangeira

Enquanto ainda atuava como soldado, era comum ouvir dos colegas que a legião estrangeira poderia ser uma oportunidade de seguir na profissão e vencer na vida. Fundado em 1831, este ramo do serviço militar francês é composto por voluntários estrangeiros interessados em servir nas forças armadas do país.

Patrick se preparou por um ano antes de disputar uma vaga na Legião Estrangeira, no início de 2024. Viajou a Paris com dezoito dólares, sem dinheiro para pagar hotel e dormiu três dias sob a torre Eiffel até refazer um exame de natação em que havia sido reprovado no teste inicial. “Eu ainda não falava o francês, mas conseguia entender alguma coisa. Acabei realizando o melhor teste físico do agrupamento, fui aprovado e tomei parte na legião.”

Na etapa de treinamento, com duração de cinco meses, os celulares foram confiscados e os soldados impedidos de se comunicarem com a família ou falarem a própria língua. Eram submetidos a um intenso treinamento e aprendiam, na marra, a falar o francês exigido aos recrutas estrangeiros. “A legião é muito mais difícil do que as forças armadas brasileiras porque nos submetem a um treinamento especial, destinado à elite europeia. Em caso de guerra, os legionários são enviados antes do exército convencional, o que nos obriga a treinar em piores condições, mas com melhores armamentos”.

Soldados sem passado

Conhecida por abraçar combatentes que querem esquecer o passado, a legião estrangeira tem como hábito dar a eles uma nova identidade. Ao ser admitido, o brasileiro deixou de se chamar Patrick José Gonçalves para se tornar o legionário Danilo Justino Victor. Tudo o que aconteceu antes seria deixado para trás. Teria uma nova origem, com diferente identificação. “Naquele lugar, eu conheci pessoas do mundo inteiro. Cada um tinha o seu passado, mas ninguém perguntava nada a respeito. Éramos membros de uma mesma família, prontos para dar a vida um ao outro. Meu melhor amigo era um francês. Nós brigamos no primeiro dia porque não compreendi a sua língua, mas nos tornamos irmãos. Na legião, se você briga com alguém, em cinco minutos está tudo certo porque somos profissionais. É preciso entender que não é fácil conviver com pessoas de diferentes culturas. Eu buscava me adaptar e estava ciente de que aquela era a vida que eu tinha pedido a Deus. Muitos que estavam lá faziam por obrigação. Para mim, era diferente. Eu estava lá por amor, levando a vida que sempre quis.”

O brasileiro integrou as forças legionárias por um ano, até lesionar o joelho esquerdo, em um exercício de rotina. “O capitão deu três meses para me recuperar. Enquanto isso, retornei ao Brasil e atuei novamente como servente em Santa Rita do Sapucaí. Foi naquele momento que eu tomei conhecimento de que deveria me alistar no exército ucraniano e percebi que aquele não era o meu lugar.”

Em três anos, desde que decidiu se alistar no exército brasileiro, Patrick havia se tornado soldado, viajado sozinho para a França, se transformado em combatente da legião estrangeira, mas retornou a Minas Gerais para trabalhar na mesma função do início. Enxergava na vida militar uma oportunidade de subir na vida e decidiu se alistar nas forças ucranianas como voluntário. “Eu voltei financeiramente bem, mas surgiu a oportunidade de trabalhar como servente e agarrei com todas as forças porque não sou melhor do que ninguém. Eu não gosto de trabalhar em construção por ser um ofício muito pesado e cansativo, mas queria viver aquilo novamente, antes de retornar à Europa.”

O caminho percorrido para integrar as forças ucranianas foi entrar em contato com o centro de recrutamento e aguardar o recebimento de uma carta-convite capaz de facilitar a chegada do voluntário ao leste europeu. Patrick recebeu o retorno na quinta-feira, pediu as contas no dia seguinte e embarcou para a Ucrânia na outra semana. Fez escalas por Panamá, Punta Cana, Bélgica e Varsóvia, até chegar ao país em guerra, após sete dias. Depois de um rápido treinamento, integrou um grupo de operações especiais, mas não permaneceu muito tempo já que o seu contrato de trabalho ainda não havia sido expedido. Com a autorização para entrar em combate, acabou se tornando líder de uma unidade formada por oito colombianos e nove brasileiros. Tal caminho abriu a possibilidade de se tornar sargento, patente que espera receber em breve.

Zona de guerra

“Aqui tenho tido contato com situações que jamais encontraria em outro lugar. A Ucrânia não é brincadeira. Já vi muitas pessoas morrerem e estou vivendo situações complicadas. É inaceitável ver crianças feridas e mortas, como acontece com frequência. Me impressiona ver uma adolescente caída no chão ou uma criança à espera de socorro. Nunca pensei em viver algo parecido. É assustador.”

Segundo contou o combatente brasileiro, nem todas as informações do que acontece na Ucrânia são expostas ao mundo, através da imprensa. “A Rússia não está atacando somente os militares. Eles atacam civis, escolas e hospitais. Nosso papel é cessar as ameaças do inimigo.”

Muitos voluntários têm desembarcado na Ucrânia em busca de compensação financeira ou visibilidade, mas morrem rapidamente por não estarem preparados para o combate. “Eu digo aos meus amigos que, se estiverem interessados em vir para cá por causa do dinheiro, que fiquem em casa. Ninguém fica rico na Ucrânia e ganhamos na moeda deles. Para receber trinta mil reais, é preciso permanecer um mês inteiro no front, dentro de uma guerra perigosa e muito difícil. Cheguei a permanecer dezessete dias em missão e senti a morte ao meu lado. Combater trinta dias seguidos é como abraçar a morte e, uma hora ou outra, ela acaba vencendo. Tenho notado que, para um civil, é muito mais difícil sobreviver a esta situação já que ele não consegue se transformar em militar depois de apenas um mês de treinamento.”

O que o mantém no front

Patrick acredita que se não tivesse sido submetido a um treinamento eficiente no Brasil e na Legião Estrangeira, já teria deixado a Ucrânia. Ele conta que seis brasileiros desistiram quando seus companheiros foram feridos e que pretendem regressar o quanto antes.

Dois brasileiros que estiveram recentemente em missão com Patrick estão internados em estado grave. Ele viu muitos soldados serem mutilados, perderem braços e pernas e descobriu “in loco” que o cenário de guerra tecnológica é bem diferente dos combates convencionais. A guerra eletrônica colocou no campo de batalha mísseis teleguiados e drones de alta precisão. O fato de estar sendo preparado para se tornar sargento, deu a ele o privilégio de permanecer recuado em uma base de comando, mas muitos de seus companheiros sofreram ataques a poucos metros adiante. Drones são abatidos nas redondezas, mísseis devastam tudo em um raio de duzentos metros, mas ele afirma que as pessoas se acostumam àquela realidade. “Este lugar cheira à morte. É só destruição. O povo ucraniano tenta levar a vida como se nada estivesse acontecendo, mas é horrível. Vejo crianças brincando pelas ruas, pessoas nos vilarejos, mas o cenário é de destruição. Por onde passamos, há corpos que não serão resgatados para não colocarem em risco a tropa e o odor se espalha por todos os cantos.”

O que vem a seguir?

Vindo de Sumy, o grupo de Patrick acaba de chegar em Zaporizhzhia, cidade de 728 mil habitantes, localizada a 120 quilômetros do território Russo. Nos próximos dias, o brasileiro deve comandar sua equipe em combate, no território inimigo. A guerra da Ucrânia foi o seu primeiro contato com um cenário de guerra e mudou completamente a sua forma de enxergar a vida. Ele sente que o ambiente tem feito dele uma pessoa insensível e tal realidade tem sido capaz de impulsioná-lo a encarar qualquer missão, sem pensar nas consequências. “Os russos não transformam soldados latinos em reféns. Eles executam os combatentes brasileiros, capturados ou rendidos. Do lado de cá, fazemos a mesma coisa. No caso de prisão de russos ou ucranianos, existe a troca de prisioneiros, o que não acontece com a gente. Qualquer ameaça precisa ser neutralizada. Isso faz de nós pessoas mais frias. Desde que cheguei aqui, tenho sentido dificuldade de demonstrar sentimentos.”

O contrato de prestação de serviços ao exército ucraniano tem duração de três anos, mas o combatente pode solicitar férias ou cancelamento, depois de 6 ou 7 meses. Caso decida deixar a Ucrânia, não está nos planos de Patrick retornar ao Brasil. Sua intenção é integrar um quarto exército e cogita viajar para a Síria, Estados Unidos ou Haiti. “A guerra cansa. Desgasta a gente de uma forma que eu nunca vi. Ficamos vinte dias sem tomar banho, ouvindo sons de bombas caindo e com pessoas mortas ao redor. Acho que não irei carregar traumas porque me sinto bem psicologicamente. Tenho feito um bom trabalho, não hesito em cumprir ordens e fui muito bem preparado para estar onde estou. Depois de tudo o que passei, hoje sinto que me transformei em um verdadeiro soldado.”

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