Você pode entornar uma garrafa de vodka, encarar um vinho doce e vagabundo, exagerar na cerveja e no cigarro, misturar licor, marula e batida de pinga… tudo isso dá uma ressaca desgraçada e faz o corpo gritar. O que ninguém pode negar é que existe um tipo de ressaca mais corrosiva do que o consumo excessivo do álcool: a ressaca de gente. Essa fará você pedir ao diabo que lhe ofereça um quartinho nos fundos, produzirá cicatrizes em seus olhos e o fará jurar nunca mais botar os pés naquele bar.
Sou um sujeito retraído. Tenho um grupo restrito de amigos com quem me encontro para contar como foi a semana, ouvir histórias e dar umas risadas sem correr o risco de ser mal interpretado. Acontece que, você sabe, bar é uma terra de ninguém. Sujeito chega de mansinho e, quando você percebe, encontra doses de Campari na sua comanda e o caralho. Desligado que sou, só fui me dar conta de que havia um sujeito cara larga na minha vida boêmia quando a situação chegou ao limite. O cara já estava na cola há algum tempo. Esses trastes são lisos. Jamais vão levantar a voz ou tratá-lo mal. Chato impregna mais do que fumaça de cigarro sem filtro. Tem o dom de escorrer pelo corredor estreito do boteco e, quando você atina, lá está o seboso escorado ao seu lado.
Não faz muito tempo, levei minha esposa para um jantar no restaurante de um velho amigo. Dávamos risadas e falávamos sobre coisas que a rotina esconde, até que me chega o seboso, quarenta e tantos, solteiro, chato pra caralho e me pede para sentar na mesa. Sou demorado para notar as coisas. Estou sempre desprevenido. Como dizer não numa situação daquelas? E o cabra senta. E pede um copo. E entorna minha cerveja e começa a falar de tecidos. Que porra eu entendo de popeline? O sujeito insiste. E fala. E fala pra cacete! Os planos de viagem, as preocupações da minha mulher com o aniversário do filho e a vacina da cachorra, não importam mais. O sujeito engata uma terceira sobre os descontos que encontrou na vinte e cinco e não há remédio senão pedir a conta.
Ontem a história se repetiu. Estava com um tio e uma prima que raramente encontro. Adoro aquele sujeito. É tão detalhista para contar as coisas que tento memorizar as suas frases para construir as minhas. E dá-lhe, cerveja, vinho e o que viesse. Vejo o seboso chegar à porta com um sorriso maroto, aproximar-se lentamente da mesa e pedir uma cadeira. “Filho da puta!” Tornara-se íntimo. Deve ter visto em mim um passaporte para falar sobre cambraia com quem quer que seja. E começa… sua voz fina preenche todas as frestas do restaurante e já começa a incomodar os clientes na outra ponta. O chato me entrega 3 Reais, pede uma cerveja de 7 e apresenta a minha comanda ao garçom. Fiquei sem reação. Ele é humilde e até meio delicado. E eu não tenho meias palavras. Como dar porrada num cara desse? E chega a refeição do meu tio. Um boêmio que conhece bem as antimanhas dos velhos golpistas. O seboso fala, ele não responde. Sem se dar por rogado, o chato usa as mãos para rasgar um pão fatiado, mergulha-o na tijelinha de homus (era comida árabe) e escancara a boca para receber a massa que perdera o brilho ao aproximar-se de um emaranhado de restaurações mal feitas. A massa gruda no canino. Minha prima faz cara de nojo. “Foda-se” – penso. – “Ele que fique aí.” Dois amigos chegam em seguida. Me encontro com eles no balcão e sou recebido com um abraço. É praxe nos encontrarmos naquele bar há mais de 5 anos. Há poucos metros, o meu tio paga a conta e foge. O chato chega ao balcão. Pede um copo, enche com a cerveja dos meus amigos e solta sua voz imersa em gás hélio. “Tenho uma mala cheia de tecidos lá em casa. É com ela que eu ganho a vida!” – “Puta quel pariu!” – rosno. “Deve ser uma mala enorme!” – responde o meu amigo. O seboso posiciona-se, estrategicamente, no centro do balcão e abre os braços. É repreendido pelo dono do estabelecimento que diz que ele poderia estar passando dos limites. “São meus amigos!” – dá um tapa nas costas do músico. Meu amigo acende um cigarro para acalmar os nervos. O seboso fila. Chega outra cerveja. O chato serra. Meu amigo acende um cigarro na bituca fumegante e o sujeito arreganha o maço sobre a mesa para ver o que tinha sobrado. Terra devastada.
Meu amigo tentava relatar sua última peripécia, mas parecia afogar-se em um oceano pegajoso. Contava que foi parado por um policial que puxou a capivara de seu veículo e encontrou mais de cinco anos de IPVA vencido. “Todo aquele imposto, somado aos prejuízos da multa, guincho e estacionamento… não vale a pena. Abandonei o Corsa no pátio da delegacia e comprei outro carro! Uno Fire! Bonito pra caralho…” – e foi cortado novamente pelo chato: “Carro novo? Vou aceitar carona!” E meu amigo pulou com os dois pés em seu peito: “A pena do chato é andar a pé. Comigo você não vai!” E aplicou-lhe um direto no nariz.
(Carlos Romero Carneiro)
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