O sábio Gumercindo Rodrigues

Gumercindo Rodrigues é referência entre os historia-dores locais. Aos 88 anos, o sapateiro que trabalhou a vida toda na rua da ponte, conhece muitas histórias e contou algumas, em uma entrevista exclusiva.

Como era a Santa Rita da sua infância?

Na minha infância, a cidade era muito pequena. Só e-xistia a rua do Queima, a rua da Ponte, a praça, a rua do Zé da Silva, a rua Nova, a Erasmo Cabral e a rua dos Marques. Na várzea onde está o hospital, era um aterro. Lá só tinha um campo de futebol onde eram armados os circos que chegavam à cidade. No lugar onde está a casa da Dona Mariquinha Barbosa (perto do Pronto-Atendimento) existia um córrego. Nos fundos da casa do Acácio Vilela também tinha uma lagoa em que chegou a morrer um estudante, filho de judeu. Essa terra era muito pacata. Assassinatos não aconteciam. Briguinha de pinga era comum mas, em cinquenta anos, só soube de uma morte.

O senhor começou a trabalhar muito cedo?

Comecei na oficina do Marra. Depois, trabalhei para o Didico, filho do Antônio Turco. Em seguida, fui embora com a minha família para Cachoeira e só voltei, já moço, para trabalhar na rua da ponte como sapateiro.

Onde ficava o seu estabelecimento?

Era onde hoje está o Banco Bradesco. Eu tinha uma porta ao lado dos Abdalinhas, em uma garagem. Ali, entrei mocinho e saí velho. Comecei com vinte e dois anos e saí com quase setenta. Fiquei trinta e sete anos em um lugar só. O proprietário do espaço era o senhor Rodolfo Adami, grande pioneiro de Santa Rita.

Conte-nos sobre o senhor Adami

Rodolfo era pai do Ico Adami. Pouco antes de vir para cá, trabalhou na construção das estradas de ferro de Diamantina e Ouro Preto. Na ocasião, durante a inauguração da estrada de ferro, disse que conversou com Dom Pedro e que viu uma rainha da família Savoya, da Itália. Sua chegada por aqui aconteceu porque o próximo serviço seria em Passa Quatro e ele errou o caminho. Somente quando chegou a Bela Vista disseram que a cidade não era essa.

Ele ajudou a construir a nossa ferrovia?

Quando Rodolfo chegou, a ferrovia já havia sido traçada. Ele estava descansando em um rancho de peões que existia na atual rua da ponte, em frente à casa do Jaques Bresller, quando foi visto por um engenheiro que, ao reparar nas suas corroças, perguntou se ele trabalhava com construção. “Onde tiver trabalho eu fico!” – respondeu o italiano. Com suas carroças, ele aterrou um trecho da ferrovia e acabou se casando por aqui. A primeira fábrica de macarrão e a primeira padaria da cidade foram dele. Foi ele quem aterrou a rua da ponte e comprou uma máquina de café, na rua do queima. Rodolfo foi um dos pioneiros de Santa Rita.

Como era a sua oficina?

Meu boteco (oficina) era uma vergonha! Tinha de tudo! Moço, moça, velho, velha! Gente de tudo que é tipo! O falecido Celso era um grande companheiro que frequentava lá. Como andante era o que mais tinha na cidade, o Walti-nho do Bruno ficava na porta mexendo com eles. Ele, quando moleque, era uma praga! O pé de anjo (personagem folclórico da época) era divertido, mas falava cada palavrão pra nós, rapaz…

Quem frequentava o local?

Convivi com muita gente. Com pedidores de esmolas, prostitutas, princesas e sábios. Um deles, o Leopoldo Memberg – neto de um general da Baviera – era um verdadeiro gênio e nunca ostentou um só título. Era irmão do doutor Frederico de Paula Cunha e tinha uma cultura de fazer inveja. Tudo o que você perguntava o danado entendia. Foi com ele que ouvi falar, pela primeira vez, do Titanic. Ele também me contou muitas histórias sobre sua visita ao Padre Vítor.

O que ele contou sobre o Padre Vítor?

Padre Vitor recebia presentes todo dia, mas tudo que ganhava aqui, doava ali. Deitava no chão porque não tinha onde dormir. Era uma das únicas pessoas do mundo que faziam desdobramento (viagem espiritual). Leopoldo conta que, certa vez, dois padres amigos dele foram para Roma comprar seu título de “pároco” e, quando chegaram lá, descobriram que ele já tinha passado antes, pegado os documentos e voltado pra casa.

Quem foram os seus amigos na juventude?

Eu fui grande amigo de um homem que brigava até com a sombra: Edmundo Síecola. Ele era dono de um coração e de uma bondade que não tinha tamanho. Era uma pessoa honesta, sincera e franca. Convivemos muito tempo. Também fui muito amigo do Belarmino – um grande humorista do rádio brasileiro. Ele chegava na minha oficina, arrancava o sapato e dizia: “Conserta aí porque eu não tenho dinheiro pra comprar outro!” Era um homem de um coração e de uma bondade muito grandes. Quando chegava na oficina, o dia acabava, xará! Ficava o dia inteiro contando histórias.

Conte-nos uma delas

Ele contou que conheceu o Juscelino Kubitschek em um recreio de faculdade. Como eram pobres, ficavam isolados dos ricos. Depois de formados, eles estiveram na revolução de 1932 e trabalharam como médicos. Eram tão próximos que, quando Juscelino foi governador, chamou Belarmino para ser o seu Secretário de Saúde.

O Dito Cutuba também frequentava a Sapataria?

O cutuba foi muito amigo meu e não saía da minha ofi-cina. Sua vida pregressa foi cheia de frustração e revolta, mas era muito querido na cidade.

Ele tinha amigos importantes?

Uma vez, quando o Tonete (irmão do Bilac Pinto) – que era Procurador do Estado da Guanabara – apareceu por aqui, ficou hospedado na casa do falecido Coronel Chico Moreira e pediu ao João do Carmo que chamasse o Cutuba. O dois eram muito amigos porque estudaram juntos em Brazópolis.

Estava aquele homem importante no portão da casa do Chico Moreira quando chegou o Cutuba – fedido, barbudo, sujo e com um chapéu enorme na cabeça. Tonete, quando o viu, falou: “Como você está moço, Dito!” E o Cutuba res-pondeu: “Estou moço porque eu sou vadio! Como você tem responsabilidade, está velho!” Os dois almoçaram juntos na mesa do Chico Moreira!

No outro dia, eu estava trabalhando, quando o Cutuba chegou e sentou em cima de um monte de pneus que tinha em frente ao balcão. Ele virou pra mim e disse: “Moço, eu tô abonado!” E retruquei: “Abonado como? Você não traba-lha…” Ele enfiou a mão no bolso, tirou duas notas novinhas de cinco mil cruzeiros e falou: “O Tonete me deu!” Era muito dinheiro! Umas notas bonitas de dar gosto!

Qual a diferença entre a cidade de ontem e de hoje?

Hoje, está muito bom para o operário. Antes, o povo era muito sofrido. Tinham os barões e tinham os escravos. O camarada tinha muito valor, quando trabalhava dia e noite. Quando ficava velho, ou ia para o asilo ou pedia esmola. Do Getúlio pra cá, quando foram criadas as leis trabalhistas, a coisa melhorou. Hoje, não vejo mais ninguém descalço. Não tem mais ninguém rasgado ou sujo. Atualmente, o país está uma maravilha para o operário.

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