Acho que eu nunca senti tanto medo de alguém como senti da Dona Anna. Aluno do glorioso Grupão, sempre evitava cruzar com ela no recreio ou pelos corredores daquele prédio de paredes grossas que deixavam o ambiente frio durante o ano todo.
Seu gabinete estava localizado na lateral direita do prédio, com uma varanda bem em cima da imensa porta que dava acesso às salas de aula. Eu passava por ali correndo… Do alto dos meus 6 ou 7 anos, imaginava que ali vivia a criatura mais braba do universo, pronta para me trucidar com raios que partiam de seus olhos fumegantes. Curiosamente, na face oposta do prédio, estava localizado um gabinete dentário que também me botava um pavor absurdo, mas não tanto quanto a temida diretora. Eu preferia tirar um dente a encontrá-la nos corredores. Aquele sentimento não era só meu. Tenho absoluta certeza de que muitas crianças que passaram pelo grupão “cortavam um prego” só de pensar que poderiam ser mandadas para as masmorras. Mas era muito por conta da mística criada em torno de sua figura que o Grupão era um brinco! A escola era limpinha, a molecada impecável, os professores pontuais, a merenda deliciosa e os livros didáticos estavam sempre em excelentes condições. Nada passava batido.
Todo dia, era um mesmo ritual, capitaneado pela nossa temida diretora. A molecada chegava sem atraso, formava fila no pátio, colocava a mão direita sobre o ombro do coleguinha, cantava meia dúzia de musiquinhas e, turma por turma, pegava o rumo da classe, sem dar um pio. Velhos hits como “Dona baratinha”, “Se és feliz quero te ver fazer legal”, “Decolores” e outras pérolas do cancioneiro infantil foram entalhadas, para sempre, nas profundezas do nosso inconsciente.
Quando estávamos na classe, também havia um procedimento ensinado a todas as crianças. A molecada podia estar botando o terror. Era só Dona Anna colocar a cabeça para dentro da porta que todo mundo corria às suas carteiras e fazia posição de sentido. Só então Dona Anna dava início à sua entrada triunfal. Cansei de ver moleque tomando pito durante a chegada da diretora, mas não tenho dúvidas de que, até os professores, engoliam a seco quando ela despontava com cara de poucos amigos. Todo mundo sabia que se a Dona Anna tinha chegado, a batata de alguém tinha assado.
No dia das crianças, dava um nó na minha cabeça. Ela entrava, todo mundo fazia posição de sentido, éramos autorizados a sentar, mas o padrão mudava. Em vez de passar sabão, Dona Anna vinha com um engradado de caçulinha JF e uma caixa de pão com mortadela! Aquilo era Complexo de Estocolmo puro, mas nós ficávamos numa alegria só e o lanchinho vinha muito a calhar! Junto com a servente, ia entregando, um a um, abrindo as garrafinhas geladas, com aquele aroma de mortadela se espalhando pelo bairro todo. Estava tudo certo! Ela estava perdoada pelo resto da vida!
Até hoje, nutro um imenso carinho pelos meus professores e suspeito que este sentimento tenha origem no respeito com que aprendemos a tratá-los no ambiente escolar. Muito desta relação vem dos valores que nos foram ensinados no grupão, dirigido por Anna Abdalla.
Quando eu soube do seu falecimento, numa tarde chuvosa de 13 de dezembro de 2022, meu pensamento retornou à escola da minha infância, tão imensa quanto naqueles velhos tempos. Eu continuava sendo aquele menino que lá esteve no anos 80, sem saber de nada e com um futuro incerto pela frente. Naquele momento, entretanto, o medo que sentia dela deu lugar à gratidão. Senti carinho por esta pessoa incrível, cuja missão foi delinear o caráter de tantas crianças. Muito obrigado, Dona Anna! Talvez tenha escrito essas linhas com medo de ficar de castigo, mas não poderia deixar de dizer o quanto a sua presença e trabalho significaram para a construção da minha identidade.
(Por Carlos Romero Carneiro) Neste mês, fizemos uma viagem no tempo e tivemos notícia de…
(Por Carlos Romero Carneiro) Minhas recordações mais remotas do Sol Nascente remontam ao início dos…
(Por Ivon Luiz Pinto) Eu sempre desejei ser feliz e a procurei por todos os…
Através de alguns recortes de jornal da década de 30, encontramos uma notícia curiosa sobre…
(Por Adjair Franco - Dija) Conhecido como Doutor Élcio, é um homem de coração de…
Transcrevemos, abaixo, com algumas correções na língua portuguesa para melhor entendimento dos leitores, uma carta…