Colunistas

Meu amigo, Fábio Mazzaropi

O último comparsa a se mudar para a nossa rua foi o Fábio Mazzaropi, irmão do Chico Bento e da Abajour. Eu não saía da sua casa e não demorou para que ele se tornasse um dos meus melhores amigos. Foi um dos poucos meninos da turma com quem não perdi contato, no decorrer dos anos. Era um rapaz curioso e divertido que desenhava nas paredes do quarto, tinha vários livros de ciências e falava de assuntos que ainda eram desconhecidos para nós. Fizemos uma série de aventuras durante a infância, nos distanciamos na adolescência e nos reencontramos, algum tempo depois. Dia desses, me convidou para conhecer a sua nova casa. Casou-se com uma alemã, teve dois filhos e vive há um bom tempo em Munique. Das boas recordações que guardo dele, uma delas aconteceu num domingo de oitenta e quatro, quando entrou em casa apressado para dizer que não iria brincar. Um tal “Karate Kid” passaria na televisão e ele não perderia por nada. Eu que nem sabia o que era karatê, corri para casa para ver do que se tratava e fiquei tão fascinado pela trama do menino lutador, que treinei dezenas de vezes o golpe final. Aquilo poderia ser bem útil em algum momento. E não demorou para que a oportunidade chegasse. Arranjei briga com um menino gordinho, recém-chegado à escola, tentei fugir pela lateral do prédio, mas um moleque me segurou pelos braços e me levou à outra saída, onde era aguardado por boa parte da molecada. Assim que o duelo teve início, percebi que o rapazinho não era tão forte e decidi liquidar com a briga. Levantei os braços, ergui umas das pernas e soltei uma bica na canela do gordinho. A escola inteira deu risada, inclusive ele. A briga terminou por ali e me rendeu gozação por algum tempo.
Até que se matriculasse no colegial, fui bem próximo do Mazzaropi. Nossa aventura derradeira aconteceu quando eu tinha uns treze anos. Sentado à beira da calçada, ele avistou um brilho no meio de uma floresta e alguém imaginou que poderia ser uma cachoeira. Nós enchemos a mochila de pão com mortadela e partimos em direção à serra do paredão. Assim que encontramos um veio d’água, adentramos a floresta densa, sem nos lembrarmos de que ali habitavam jaguatiricas, lobos guarás, serpentes e outras espécies pouco amistosas. No meio da tarde, veio o chuvisqueiro. Nos deparamos com uma pequena gruta, buscamos abrigo sob as pedras e percebemos que um líquido escuro e viscoso escorria de suas paredes. “É petróleo, estamos ricos!” — gritou Foca, tal qual os Goonies, ao encontrarem o tesouro de Willy Caolho. Alguém precisou lembrá-lo de que aquela montanha não era nossa e a decepção foi geral quando acendi a lanterna, apontei para o teto e constatei que aquele caldo era merda de morcego. Havia dezenas deles no topo da caverna. Quando a tempestade acalmou, juntamos as coisas e cortamos a mata. Morro acima, vimos uma enorme pedra. Mazzaropi agarrou um cipó, fez pose de Tarzan e pulou para fazer graça. Na primeira vez, foi e voltou. Ele tirou a mochila das costas, se agarrou novamente e partiu para uma viagem com destino a uma fissura entre duas rochas. O cipó arrebentou no topo da árvore, ele se estatelou e uma de suas pernas se encaixou perfeitamente na fenda. Eu não sabia se ele estava rindo ou chorando, mas não me contive. Com o corpo quente, não sentiu dor, mas decidimos descer a montanha íngreme, antes de encontrar a nascente. Nos quatro meses seguintes, Mazzaropi teria que se submeter a diversas sessões de fisioterapia para que pudesse voltar a andar. Aquela foi a última vez em que a turma se reuniu para desbravar as florestas que circundam o vale. Os últimos suspiros de uma infância despreocupada e feliz.

(Extraído do livro Quarentena aos Quarenta, de Carlos Romero Carneiro – Marmota Books)

Admin

Recent Posts

Dois grandes artistas esquecidos de nossa cidade e a máscara mortuária de Delfim Moreira

(Por Carlos Romero Carneiro) Enquanto buscávamos informações sobre a trajetória de escultores e artistas em…

14 horas ago

O escultor do monumento a Delfim Moreira

(Por Carlos Romero Carneiro) Uma das obras mais representativas de Santa Rita do Sapucaí é…

14 horas ago

O Bar do Júlio

Relendo o Almanaque Cultural Santa-ritense 2, deparei-me com uma foto, na página 79, que levou-me…

2 semanas ago

A minha primeira Festa de Santa Rita

(Por Carlos Romero Carneiro) Eu jamais me esqueci da primeira vez em que tomei contato…

2 semanas ago

Como foi criado o símbolo que estampa a bandeira de Santa Rita do Sapucaí?

(Carlos Romero Carneiro) Santa Rita do Sapucaí possui um brasão muito bonito e que estampa…

2 semanas ago

Os cartuchos de doces

(Lavinya Ribeiro) Assim como muitos produtos da nossa cultura, os cartuchos de doces também foram…

2 semanas ago