Cultura

Memórias de um autor “indígena”

Este é um trecho da obra As Aventuras de Tibicuera, escrita por Érico Veríssimo. Nele, o narrador mistura realidade e imaginação ao descrever um momento de profunda reflexão diante do mar. A aparente visão de Anchieta — figura histórica ligada à catequese no Brasil colonial — desperta lembranças, desejos e um forte sentimento de continuidade entre o passado e o presente. O trecho revela, com sensibilidade e ironia, como a história pode emergir de forma inesperada no cotidiano.

Deixo por um instante a minha máquina-portátil em que bati todo este livro. Levanto-me. Vou até a janela. Meus olhos descansam no verde bonito do mar — do velho mar onde vi as caravelas de Cabral. Volto ao passado em pensamento. E de repente sinto um sobressalto. É que vejo lá em baixo à beira d’água um vulto familiar e querido. Meu coração bate com mais força… Não pode haver engano. É ele, sim, é Anchieta. Está encurvado, escrevendo alguma coisa na areia. Talvez um novo poema à Virgem. Bem como naquele dia em Iperoig, enquanto os tamoios rugiam e faziam planos de vingança. O mar vem lamber os pés do apóstolo. Ele está indiferente aos banhistas, aos guarda-sóis de gomos coloridos. Fico por um instante deslumbrado. Procuro vencer o espaço que me imobiliza. Faço meia volta. Precipito-me para fora de meu apartamento. Impaciente, não espero o elevador. Lanço-me escadas abaixo. De novo me sinto ágil como o índio que corria na taba. Vou apertar a mão de meu amigo Anchieta! Vou pedir-lhe notícias de Nóbrega e dos outros. Vou pedir-lhes que voltem, pois ainda há trabalho, muito trabalho a fazer. Ainda há alguns selvagens a catequizar. Sim, apesar dos arranha-céus, dos aviões, do rádio.
Desço a escada de três em três degraus. Chego finalmente ao térreo. Atravesso o saguão como uma flecha. Saio para o sol. Corto a rua. Avanço, pela areia. Correndo sempre. Enxugo o suor. E me encontro frente a frente com um cidadão vestido de preto que risca pacientemente na areia, com a ponta de seu guarda-sol, um nome qualquer. Ele me olha, espantado. Gaguejo uma desculpa:
— Perdão… Pensei que fosse Anchieta.
Ele não compreende. Alguns banhistas que estão por ali riem da minha atrapalhação. Volto para o meu apartamento, decepcionado e infeliz.

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