Categories: Colunistas convidados

Memórias de Silva Filho

Vendedor de ovos

Eu ainda era garoto quando o meu pai negociava aves e ovos com um atacadista de São Lourenço. Certa vez, por conta de uma grande baixa desses produtos, fui incumbido de vender os ovos pela cidade. Com um cesto debaixo do braço, saí à procura de fregueses pelas ruas. Caía uma chuvinha fria, fina e persistente. No aterro, hoje avenida Delfim Moreira, havia poucas casas e, quando chovia, aquele barro vermelho ficava mais escorregadio do que sabão. Ao passar por ali com minha carga preciosa, levei um escorregão e aquilo virou omelete.

O texto chupinhado

Mais tarde, já adolescente, comecei a gostar de literatura, fazer discursos e escrever. Naquele episódio, fui alvo da minha própria trama. A lição foi dura, mas valeu a pena. O Centro Espírita possuía um jornal, o “23 de setembro”, editado pela entidade. Por várias vezes, tentei rabiscar alguma coisa para o jornal, mas a minha limitada cultura me boicotava. Havia prometido ao senhor José Antônio Vono que escreveria um artigo e, como aprendiz de artes da Tipografia, achava que seria vergonha se não conseguisse, e comecei a comprar livros e buscar alguma coisa que pudesse aproveitar. Depois de muito procurar, encontrei um bom texto no jornal “XI de Agosto”, fundado e mantido por alunos do ginásio. Ainda me lembro do artido sobre “amor materno” que levei um mês inteiro para escrever meia página e havia encontrado um texto prontinho. Não tive dúvidas: dei uma adaptada com o que já tinha escrito, transcrevi ao meu modo e assinei com o meu próprio nome. No dia em que terminamos a impressão do jornal de D. Regina Telles, eu estava na oficina quando o Zito pediu-me que fosse comprar um maço de cigarros. Ao regressar, a Regina já havia lido o artigo e fez o seguinte comentário: “é assim mesmo que se começa!”. Considerei-me um desmascarado naquela mentira tão bem intencionada e, aparentemente, inconsequente. Todo o sangue que corria nas minhas veias me veio ao rosto e quase morri de vergonha. No dia seguinte, o senhor Vono veio me cumprimentar e eu tive a ombridade de confessar que o texto não era meu.

A serenata

Às vésperas da minha partida para São Paulo, onde iria trabalhar para ser independente e sofrer outras desilusões, senti malograr-me num instante a serenata de despedida que eu fazia para a namorada. Naquela tempo, era delegado de polícia o querido e popular Netinho. No instante em que a serenata ia ao meio, no melhor da valsinha chorosa e apaixonada, abriu-se a janela do vizinho que surgiu envolto num roupão. Quando pensei que estivesse gostando da serenata, fulminou-me com estas palavras:
– Olha aqui, rapaziada! O Netinho adora serenata! Por que vocês não vão lá fazer pra ele, heim?
Rimos muito da espirituosidade do vizinho e a serenata terminou por ali.

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