A história de um jovem jornalista capaz de acessar o passado de Capituva, sua terra natal, ultrapassou as montanhas do Vale do Sapucaí e tem ganhado um bom número de leitores, em diversas partes do país. Lançado recentemente pela Penalux, a obra busca inspiração em ruas e construções de Santa Rita do Sapucaí para construir uma narrativa misteriosa e bela. Leia, a seguir, um trecho de “Conexão Hirsch”. Tal passagem descreve a primeira experiência sobrenatural do protagonista Gabriel, guiada pelo velho Amarante, seu futuro mentor.
No cemitério
O velho prostrou-se em frente a um pequeno túmulo coberto de azulejos que imitavam mármore. Sobre a lápide, imagens dos mais variados gêneros ornamentavam a superfície. A maioria, miniaturas de gatos em porcelana, madeira e tecido apodrecido pela ação do tempo. Na pequena cruz vertical, na cabeceira do sepulcro, seis ou sete terços encontravam-se tão emaranhados que só podiam ser contados através dos crucifixos dispostos nas extremidades. Havia estatuetas de entidades do candomblé misturadas a santos católicos e bonecas de porcelana. Aos pés do túmulo, uma placa de bronze com a inscrição “Por uma graça alcançada.” indicava que ali jazia uma milagreira. Iracema Anastácio era o seu nome, entalhado em uma placa, debaixo da cruz.
— Quem foi essa mulher? — perguntou o rapaz.
— Coloque as mãos sobre a lápide. Quero que descubra sozinho — respondeu o homem.
Gabriel seguiu as orientações do velho. Colocou as mãos sobre o túmulo, fechou os olhos e procurou concentrar-se, sem grande sucesso. Vez ou outra, sua imobilidade era quebrada quando um inseto pousava sobre o seu rosto. Seus sentimentos alternavam-se. Seu estômago se contorcia. Caiu depressa demais na conversa dele. Sentiu arrependimento quando percebeu no que poderia ter se metido. Sua vontade era de estar em qualquer outro lugar, com exceção dali.
— Concentre-se! — disse o velho.
— Não sinto nada além de mal-estar.
— Você precisa se convencer de que este lugar armazena uma infinidade de informações. Estamos em um depósito e você tem que acreditar nisso!
— Existe algo, mas não sei o que é.
— Deixe-me ajudá-lo — disse o velho.
O homem repousou a mão esquerda sobre a cabeça do rapaz, enquanto a destra permanecia no bolso do paletó. Com os olhos apertados, emanou uma poderosa corrente energética que partiu de seu braço, percorreu em movimentos espirais o corpo de Gabriel e produziu uma sensação de congelamento na espinha, dissipada, imediatamente, às extremidades. A ânsia retornou com potência, mas estava convencido de que a satisfação proporcionada pela experiência seria maior do que o desconforto, o que o manteve imóvel. Aquela situação o fez lembrar-se de que, na infância, fora instruído pelo pai a jamais deixar alguém se apoiar sobre a sua cabeça daquela forma. “Nem padre, nem ninguém! Bota você em condição de inferioridade!”. Gabriel costumava seguir as orientações de Alfredo, mas não ousou contrariar o que homem dizia. Seus devaneios o levaram a um estado intermediário, entre a vigília e o sono, quebrado de forma abrupta quando percebeu que o ambiente começava a se transformar.
Alguns palmos à frente, avistou uma velha com oitenta e poucos anos, coberta por uma túnica feita de estopa sobre uma montanha de trapos. Ela se apoiava em um porrete de guatambu e suas unhas, grossas e desniveladas, estavam impregnadas por uma sujeira ocre. Não era possível distinguir se o tom pardo de sua pele era natural ou resultado de uma continuada exposição ao sol e à poeira. A falta dos dentes deixava a boca escavada e colocava o maxilar em evidência. O ambiente cheirava a lenha. O único som vinha da sopa rala que fervilhava no fogareiro improvisado com uma pilha de tijolos. Seus pés, de quem nunca usou calçados, pareciam se misturar à superfície de terra marrom e mal sustentavam o seu corpo frágil.
Ao fitar os olhos miúdos da mulher, o seu corpo vibrou com intensidade. As retinas eram de um azul intenso, que contrastavam com a pele fosca e enrugada. Uma profunda mágoa e ressentimento acometeram Gabriel, o que o fez deduzir como o velho poderia saber tanto a seu respeito. “Então é assim que ele faz…” Imediatamente, foi invadido por sentimentos de resignação e plenitude. Separados pelo tempo, sentiu-se conectado à mulher e seus pensamentos pareciam fundir-se aos dela. Diferente das impressões que tinha de uma pessoa santa e milagrosa, não viu em Iracema a confiança de quem conhece a face de Deus. Para ela, viver ou morrer não devia fazer diferença.
As paredes do casebre se descortinaram e o rapaz ouviu os gritos raivosos de crianças que rodeavam a velha. Iracema caminhava por uma rua de pedras, ladeada por casarões, enquanto três meninas, metidas em uniformes escolares, puxavam suas vestes pelas mangas e a insultavam do que vinha à cabeça. “Iracema Gato!” — berravam. “Vagabunda!”. A mulher não reagia. Seus olhos miravam o chão. A boca permanecia entreaberta. Com as costas arqueadas e os pés envergados para dentro, arrastava-se com dificuldade, escorada pelo bordão.
Em um impulso involuntário, Gabriel arrastou uma grande quantidade de gatos, santos e patuás que se estatelaram no chão de terra e chamaram a atenção do coveiro que misturava o cimento, a poucos metros dali. Ao despertar, o suor vertia com fluidez sobre o seu rosto e um tremor tomou conta de seu corpo.
— Os prejuízos são por sua conta – brincou o velho.
— Ela detestava que a insultassem daquela maneira! As miniaturas são oferendas, mas Iracema tinha horror a gatos! – disse Gabriel.
— Agora você tem uma história de verdade!
— Parecia tão real. Estava viva?
— Claro que não! É uma forma de energia que se impregnou em seu cadáver e acabou gravada no sepulcro. Não há muito o que encontrar aqui, mas as informações que ficaram são as mais complexas que eu conheço.
— Nunca senti algo assim.
— Pensei o mesmo quando soube das projeções.
— Acontece em todos os túmulos?
— Dificilmente absorverá algo tão intenso.
— Que absurdo! — disse o rapaz.
— Não quer saber como a história termina?
Com as mãos repousadas sobre o túmulo, Gabriel concentrou-se novamente e retornou ao casebre da velha, no momento em que uma lamparina incendiou as cobertas e as chamas dominaram os pertences espalhados pelo chão. Do lado de fora, ouviam-se os cães que seguiam a mulher pelas ruas arranharem a porta improvisada com sobras de madeira podre. Iracema não teve forças nem tempo para se levantar. Seu corpo inflamou-se, antes que a fumaça tomasse conta do cômodo e abrisse uma cratera no telhado de palha seca. Em instantes, os bambus que despontavam como ossos sob o reboco de barro não aguentaram o peso da estrutura e as paredes ruíram.
— Ela foi incinerada… — disse o rapaz.
— Seu corpo não se queimou completamente. Do contrário, não conseguiríamos acessar os resíduos com precisão.
— Minha pele está fumegando!
— A minha também — disse o velho.
— Podemos experimentar em outros túmulos?
— Por hoje chega. Você precisa descansar.
— Quando nos veremos de novo?
— Estarei na praça pela manhã.
Gabriel balançou a cabeça.
— Eu me chamo Amarante — disse o homem.
— Meu pai falava do senhor.
TÍTULO: Conexão Hirsch – Nostalgia, obsessões e viagens no tempo.
AUTOR: Carlos Romero Carneiro
GÊNERO: Romance
ISBN: 978-85-5833-198-2 | ANO: 2017
FORMATO: 14X21
PÁGINAS: 152 | Pólen Bold 90gr
SELO: Castiçal
(Para receber um exemplar em sua casa, ligue: (35) 3471 3798. Frete grátis para entregas locais. Se preferir, acesse o site oficial: www.conexaoh.com.)
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