Lágrimas por um cavalo

(Por Cyro de Luna Dias)

Eu estava no escritório da Casa A. de Cássia, meu pai já falecido; à frente dos negócios a minha mãe e meu irmão mais velho, Antônio de Cássia Filho. Entra um homem do campo, alto, desempenado, vermelho, de olhar franco e diz: “Há um ano e meio eu devo oitenta mil réis à casa. Tenho dinheiro apenas para mudar-me com a família para Campo Mourão, no Paraná.” Meu irmão, apertando com o indicador os óculos no nariz, como era de costume, disse: “O Paraná enriquece todos os que trabalham; quando o senhor voltar, nos pagará.” E retruca o homem: “Não! Esse dinheiro vai me tirar o sono. Tenho um cavalo que vale o que eu devo. Peço para aceitá-lo pela dívida.”

Fez um sinal que o acompanhássemos. Na frente da loja, preso pelo cabresto a uma argola de ferro no passeio, estava o cavalinho vermelho, miúdo e gordo, descansando sobre o quarto traseiro, o que deixava a sua anca completamente torta; olhos vivos e orelhas atentas. Chamava-se Boneco e mamãe ficou com ele mais pelo brilho nos meus olhos, porque o bicho não valia nem a metade dos 80 mil réis. Era um cavalo manso, mas dele caí várias vezes. Em uma delas, no meio dum ribeirão no bairro da Capituba. Caíram, também, o Antônio Afonso e seu irmão, José Pinto. Caiu o Paulo e o Hélio. Bem tinha avisado o vendedor: “Apertem bem a barrigueira da sela. Se fofear, o cavalo empina e solta o arreio e cavaleiro.” Tínhamos o cuidado de puxar a ponta da cilha ao máximo, mas o rocinante estufava a pança na hora de ser arreado e, mal o cavaleiro se aboletava na sela, vinha ao chão, num empino rápido do matungo, que saía disparado, escouceando.

Aprendemos a verificar pela cara do corcel. Ele retesava as orelhas para trás quando a barrigueira estava se soltando e pulávamos rápido ao chão. Estudando as manhas do matungo, pudemos – finalmente – passear tranquilos pelos arredores da cidade, tocando gado solteiro para pastagens que possuíamos na Capituba, légua e meia distante. Meu irmão tinha um cavalo chamado Tupi, de crinas e cauda cor de palha, árabe, nobre como um xeque. Não nos deixava montá-lo: “Vocês vão estragar a boca do cavalo.” – dizia. Eu o admirava na estrada, vendo o mano com a mão esquerda displicentemente à ilharga, a direita mal tocando a rédea e Tupi firme, cabeça erguida, levantando pó, enquanto o Boneco pererecava; queria beber água em todos os riachos, queria retoucar a grama pendida nos despenteados barrancos do caminho da Capituba. Quando Rubem ia para a Universidade, no Rio, eu selava o Tupi e lá ia, mão esquerda na cintura e rédea solta, na gostosa marcha do corcel. “Estragar a boca? Ninguém iria beijá-lo.”

Para sair da chácara, encostava-se o cavalo paralelo à porteira, pegava-se o batente com a mão direita, ia recuando o animal até abrir a fresta necessária para passar e largar o batente que se fechava com o próprio peso. Isso, com qualquer cavalo, exceto o Boneco… ele nunca se colocava na posição certa para abrir a porteira; virava ao contrário, encostava o traseiro na tábua, contra-marchava… virava à direita com a cabeça torcida pela rédea para a esquerda. Tinha-se que apear, abrir a porteira, puxar o rocim; depois, tornar a montar. Mas, na volta para casa, milagre! Boneco deixava o duro trote, resvalava apresssado mal tocando o chão, abria a porteira, ele mesmo com o focinho e parava na porta do curral com um suspiro. Às vezes, da porta da casa da praça, eu enrolava as rédeas sobre o arção da sela e, com uma palmada na anca, despachava o rocinante de volta à chácara; ele bem conhecia o caminho e parava diante da casa de Nestor, nosso capataz.

Além de outros defeitos, Boneco tinha a mania de morder. Um dia, Nestor Martins tirou-lhe o feio hábito; quando arreganhou os dentes, tomou uma pancada com o cabo do relho entre as orelhas; essa maldade do administrador resultou em benefício para a cavalgadura; daí em diante, mostrava os dentes e já virava rápido a cabeça para outro lado, sem morder. Talvez isso prove estar certa a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov.

Para pegá-lo no pasto, ante-manhãs cor de rosa de Santa Rita, contávamos com a ajuda de dois irmãos: Adão e Juvenal. Ambos cobravam uma pratinha de dois mil réis, quantia irrisória diante do trabalho de trazer o rocim até o curral, onde seria selado.

Inútil levar cabresto; ele conhecia esse instrumento de longe e se afastava para os fundos da vargem, desaparecendo na macega alta. Vinha tocado pelos dois irmãos até a porteira do curral, fraternalmente, com os braços abertos, como se quisessem fechar o cavalo num abraço. Ali, o animal murchava as orelhas e, rápido como um puro sangue, volteava nos pés a galope para o distante prado da vargem. Depois do corre-corre, pelas dez horas, finalmente a porteira se fechava sobre o astuto corcel, que se deixava arrear. Adão e Juvenal caíram dele todas as vezes que tentaram montá-lo.

Uma pausa para dizer algo desses dois frequentadores do casarão que, muitas vezes, tomavam conosco o café da manhã ou almoçavam sentados no alpendre. Adão era gordo, baixo e forte; bem mais velho do que o Juvenal, que era magro, esperto e pequeno. Ambos pretos e alegres; não lhes conheci os pais. Eram inseparáveis e alcoólatras. Quando não tinham trabalho, estavam bêbados, mas eram educados e respeitosos com as pessoas.

Logo que nomeado vigário de Santa Rita, padre Carvalhinho (José Augusto de Carvalho) apiedou-se da dupla fraterna e mandou chamar Adão na igreja. Lá, após conselhos de introito, perguntou: “Por que você bebe, Adão? E o homem respondeu: “Ah, padre, bebo de desgosto ao ver o Juvenal tão novo, com um futuro pela frente, viciado na bebida e dando espetáculos pelas ruas!” O padre chamou o Juvenal e fez a mesma pergunta. Ele respondeu: “Bebo para afogar a tristeza de ver o Adão nas sarjetas!”

Diante disso, não sei qual atitude o Vigário tomou. Adão e Juvenal morreram cedo. Ambos protegidos e assistidos por Maria, esposa de Joaquim Bueno, uma das pessoas mais bondosas que eu já conheci. Os irmãos deixaram de beber vários anos antes de morrer e trabalhavam sem perder a alegria, no próprio bar do Joaquim Bueno.

E boneco? Alguns anos nos serviu de montaria. Velho, deixamo-lo aposentado no pasto macio, onde – durante muito tempo – vagou inteiramente livre. Descansava cercado de anus pretos, almas-de-gatos e gaviões-pinhé, balançando lentamente o rabo.

Nas férias da faculdade, eu o procurava na vargem da chácara e, comovido, passava a mão sobre as crinas longas. Um dia, foi encontrado morto à sombra de um tarumã, seu ponto preferido de estar. Tratei homens que tiravam areia do rio para enterrá-lo no centro do campo, com todo respeito. Antônio do Afonso (Antônio Pinto Vilela), que estava presente, disse a oração final do pobre Boneco: “Cavalo mais besta que conheci, mas que nos deu muita alegria…”

(Texto extraído da obra “Crônica das casas demolidas”, de Cyro de Luna Dias. 1992. Editora Gabinete.)

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