Da estação à praça, com tudo acontecendo ao mesmo tempo

(Por Carlos Romero Carneiro)

A maria-fumaça chega, vagarosa, à estação Affonso Penna. Bato o pó da roupa, sigo o fluxo de passageiros pelo estreito corredor do vagão de madeira e desembarco, tímido e trêmulo, com a minha mochila de trabalho nas costas. Divido espaço entre carroças que chegam com sacas de café endereçadas ao armazém de Paulo Quintas. O sino bate, melancólico. Um aroma de fuligem, café e estrume ocupa os espaços invisíveis. Sigo pela Francisco Andrade e sou avistado por um viajante que toca a aba do chapéu para me dizer “bom dia”. O homem arrasta uma grande mala de tecidos, até a entrada da pousada. Em alguns anos, aquela será a residência dos Luna Dias.

Na esquina da praça Delfim Moreira, um grupo de jovens, de calças jeans e camisas extravagantes, se reúne no bar da Tia Elza. Na face oposta da mesma praça, o Banco Santarritense estampa-se, ladeando a residência do presidente. Seu irmão, Francisco Moreira, adentra a agência bancária com ar sereno, sem nenhuma pressa. A rotina é lenta. O rio escorre como a vida na pequena cidade. A praça Delfim Moreira está em festa para a inauguração do busto do estadista, ainda recoberto por uma bandeira nacional. Caminho por entre pessoas desacostumadas a manifestações grandiosas e ouço Leopoldo de Luna, defronte ao monumento, justificar a ausência do escultor. Sigo em direção à Matriz. A ponte não está pronta. Ainda faltam alguns alicerces.

Vejo Cutuba pular com as mãos amarradas da estrutura metálica, desaparecer sob a água turva e despontar na margem oposta. Eu me equilibro para chegar à rua enlameada, em frente ao Grande Armazém e percebo quando um grupo de religiosos chega, em cortejo, à margem de cá do rio. Logo acima das inscrições do antigo armazém, surge o nome de outro estabelecimento: “Hotel D’Ouro”, em letras garrafais. Não há calçamento naquele trecho.

A rua do queima ainda é uma picada por onde um pescador de feições familiares se aproxima com uma fieira de peixes graúdos, tirando a atenção de um grupo de crianças que escorregam na lama. A avenida Delfim Moreira ainda é um esboço de estrada, com menos de meia dúzia de casebres, escondidos pela poeira. Uma fanfarra surge ao fundo e ouço o som abafado dos surdos, taróis e metais. Entro pela rua da ponte e avisto uma bomba de combustível, quase na esquina. Lá estão os pequenos comércios estrangeiros, como sempre ouvi contar.

Me divirto com os variados sotaques dos vendedores perdidos entre uma boa quantidade de armas, enxovais e ferramentas. Sigo pelo trajeto irregular. Há parreiras nos quintais das casas que fazem divisa com o Sapucaí. Diversidade concentrada em um povoado que se esforça para florescer. À minha esquerda, uma pequena placa indica que estou diante da Pastelaria Indiana. O recinto é minúsculo, mas está repleto de jovens. Torresmo, pinga e cerveja. Não vejo nenhum pastel e nem sei em que tempo estou.

Sigo o meu passeio, até que sou despertado pelo aroma de frutas maduras. Manga, laranja e goiabada. Um homem magro e de bigode pesa um cacho de bananas, enquanto a sua esposa corta alguns talhos de rapadura. Do outro lado da rua, um grupo de senhores espalha-se em torno de um jovem sapateiro que martela uma botina velha. Tal imagem é escondida por uma enorme fila. Casais de namorados, crianças e idosos, quase todos de chapéu, caminham em direção ao Cine Vitória. Tabuletas surgem na fachada… “A Divina Salomé”, Sinfonia da Cidade”, “A Torre de Nesle”.

Me afasto ao perceber que uma fumaça densa começa a escapar pelo telhado do cinema. Incêndio. Cruzo com Jovino Batista e sua câmera dependurada no pescoço. Na face oposta, um homem metido em uniforme branco e boné de mesmo tecido, deixa uma pequena residência com um cesto de pães e segue em direção à praça. À beira da calçada, uma criança mirrada e de nariz saliente brinca de boneca com as irmãs. Um grupo de amigos mata o tempo e pita fumo na esquina do Hotel Mello. No térreo daquele edifício, as inscrições “Casa de Modas de MaacPipano”, indica que ali funciona uma alfaiataria.

A todo momento, carroças e charretes, com suas rodas de madeira sobre o primitivo calçamento, produzem um som estridente, em sintonia com o ruído das patas dos animais sobre os paralelepípedos. Um homem baixo e avolumado se aproxima com um carrinho de mão, carregado com dois rolos de filmes. De onde estou, percebo uma placa em aço abaulado indicando que, ao lado da hospedaria, há uma agência bancária. E novamente vejo o coronel, desta vez um pouco mais velho, descer de um jipe com dificuldade, ajustar as pernas sob as calças de linho e caminhar, lentamente, amparado por uma bengala de madeira. Como se o aguardasse, é recebido por Conceição Andrade que o acompanha ao interior da agência. Um denso odor de fumaça toma conta do percurso. Do outro lado da rua, um restaurante se transforma em um velho barracão, tomado pelas chamas. Vizinhança com baldes d’água, agonia do proprietário da bicicletaria, multidão de curiosos que aguardam a chegada dos bombeiros. Me distraio com os gritos de um homem, do outro lado da rua. Salvador Caruso anuncia o vencedor da extração.

No interior da lotérica, paredes tomadas por pinturas coloridas. Nomes dos ganhadores, resultados dos sorteios e a inscrição “Campeão do Sul”, em caixa alta. Bem ao lado, outra portinha. “Papeca”. Um mezanino, um balcão, centenas de produtos disputados por mães e alunos, em início de ano letivo. Na esquina com a praça, a menos de 30 metros de onde estou, Antenor espia o movimento da sacada ornamentada por dois leões de cimento. Acena para um amigo, zomba de outro e volta para a sua residência.

Ouço o som da sirene do cinema e sigo adiante. Ao dobrar a esquina, tudo volta a ser como antes. Mal dá para ver uma procissão, barracas de festa, ou sentir o aroma de pipoca enquanto crianças correm para dentro do fliperama. A chuva de confetes em um desfile de carnaval vem como um lampejo. E um boiadeiro passa por mim, arrastando o busto de Ruy Barbosa, laçado pelo pescoço.

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