Cutuba, o antropófago africano (Por Hugo Moraes)

Nos janeiros antigos, o velho Sapucaí inchava e ocupava as várzeas: primeiro o “Campo do Flamur”. Em seguida, todas as áreas baixas até a estrada de ferro (da RMV – Rede Mineira de Viação, mais conhecida como “Ruim Mais Vai”). Entre uma enchente e outra, nadadores azarados e/ou imprudentes se afogavam e desapareciam.

Nessas, o Dito Cutuba era convocado para achar o corpo. Excelente nadador, fôlego de 14 gatos; no resgate dos afogados ou em exibições era o personagem/show; atraía multidões. Saltava do alto da ponte, mãos amarradas nas costas (não me lembro se alguém isento conferia a amarração), desviava das galhadas, boiava e sumia. Passavam os minutos e muitos gritavam: “Afogou”; já outros ecoavam: “morreu… morreu”; até que alguém berrava: “alá… alá”, e o Dito Cutuba surgia nadando, vigorosamente, quase sempre rio acima da ponte.

Há uns meses, conversando sobre esses velhos tempos com o meu amigo e colega do primário Edelwais Teles, ele lembrou-se de um episódio protagonizado pelo personagem.
Relembrei: instalou-se um circo na cidade. A chegada de circo era sempre um grande acontecimento, todos queriam assistir aos espetáculos. Mas, a decepção: não tinha o principal, o leão que estava combalido, doente ou no fim. O auge de todo espetáculo circense era o domador se exibir, desafiando a fera. A estreia foi decepcionante, indicando o fracasso da temporada.

Dito Cutuba era um dos santa-ritenses dos mais entusiasmados com circos. Nas suas múltiplas atividades, sempre ajudava na montagem, participava das carreatas pela cidade, anunciando as atrações. Enfim, vibrava. Neste caso, solidarizou-se com os proprietários. Procurou o dono do circo e fez uma proposta. O dono, embora cético, mas sem alternativas, aceitou.

Na tarde seguinte, um caminhão (como era de praxe dos circos) circulou pela cidade, anunciando sua nova atração:“Esta noite, espetáculo único no Brasil: antropófago africano, o homem selvagem que veio da África e come gente”; em cima de um dos caminhões, a fera na jaula quase toda encoberta.

O circo lotou. Abriram a apresentação com a jaula mal iluminada onde se vislumbrava uma figura urrando. Não se sabia se era gorila ou humano. Era o Dito Cutuba, pintado de preto (gordura com carvão).

Seguiram-se as atrações: trapezistas, engolidor de fogo, atirador de facas, entremeadas com os palhaços. E o povo impaciente, gritando que queria ver o comedor de gente.
Chegando a hora, o mestre de cerimônias anuncia: “Distinto público, vamos apresentar a besta-fera africana que estraçalha e devora homem, mulher e até crianças!”.

A jaula é empurrada para o centro do picadeiros – e a figura sinistra sempre urrando. Afastadas as cortinas, o monstro começa a saltar nas grades ameaçando despedaçá-las. E o povo também gritando – a maioria de pavor.
Nessa hora, um espectador acachaçado, conhecido arruaceiro, corre para a jaula, encosta nas grades e desafia o “comedor de gente”.

A “fera” salta sobre ele, agarra o valentão e, com uma dentada, arranca-lhe um pedaço da orelha e começa a mastigar (acredito que finge). O bebum, sangrando, sai em desabalada carreira e foge do circo. Não apresentou queixa na polícia. Sumiu no mundo por muito tempo.

Todos os dias que o circo continuou na cidade, lotava. E ninguém mais apareceu para desafiar a fera.

takefive

Recent Posts

Quando tentaram fatiar Minas Gerais para criar um estado sul-mineiro

Por Carlos Romero Carneiro Várias tentativas foram feitas para desmembrar Minas Gerais para a criação…

12 horas ago

Os construtores de Santa Rita do Sapucaí

(Por Cyro de Luna Dias) Na minha casa, no início do século XX, vi Tonico…

12 horas ago

Grupo de teatro carioca fará duas apresentações, neste final de semana

Sempre envolvido com a cultura e com as artes, Milton Marques trará para Santa Rita…

1 dia ago

O santa-ritense que se transformou em fenômeno das redes sociais

O nome José Henrique Longuinho não é tão conhecido quanto ‘Zé Longuinho’, que ganhou a…

3 dias ago

Trabalhadores do café em Santa Rita do Sapucaí

(Por Elísio Rosa) Antigamente, em Santa Rita, a produção de café era realizada, praticamente, pelas…

3 dias ago

Coisas de cozinheiras

Por Rita Seda Visita de filha é assim: chega com o esposo e a mãe…

6 dias ago