(Por Carlos Romero Carneiro)
Acompanhe um passeio feito por uma dupla de sensitivos e uma menina que não suspeitava de nada, do velho mercadão, passando pela beira do rio, até a ponte velha.
(Acontecido nos anos 70)
A luz alaranjada das seis da tarde se refletia nas casas, enquanto os sinos badalavam, insistentemente, em contraste com a preguiça do crepúsculo. O tempo imitava as pessoas. Não havia pressa para nada. Na esquina do mercado, uma senhorinha com jeito de beata transportava a cadeira para a calçada e juntava-se a um grupo de mulheres, do outro lado da rua. Amarante tocava a aba do chapéu e cumprimentava quem encontrasse pelo caminho.
– Nasci onde está o sol. – disse o velho ao avistar a montanha. – Meu pai morreu cedo. Aos treze anos, assumi as rédeas para sustentar a casa. Plantava alho. Dá para imaginar o que é viver de alho? Não valia nada, mas eu não sabia fazer outra coisa!
Amarante sentou-se na ponta de um banco de madeira ao chegar à praça do extinto mercado e foi acompanhado pelo casal. Gabriel ainda não havia percebido qualquer emanação no ambiente até que o velho começasse a contar uma de suas histórias.
Energias brotavam em potentes vibrações e um imponente prédio surgiu sobre o pequeno jardim. Corina achou estranho quando o jornalista entortou a cabeça. Gabriel estava encantado com a imponência da obra e questionava os motivos de sua demolição. Conhecia o mercado por meio de fotos, mas não imaginava algo tão grandioso. O velho falava sobre a vida nos arredores, quando um aroma de peixe e frutas passadas tomou conta do local. Pessoas caminhavam de um lado a outro com feixes de lenha nos ombros, cestos de verduras e garrafas de cachaça. Sob o olhar atento da menina, o velho sensitivo descrevia tudo o que via ao redor.
– Aqui, existia um mercado arredondado, com três níveis de construção. Tinha um formato esquisito. Lembrava um pagode chinês. O térreo era gradeado. Uma saída de ar na parte alta fazia a ventilação dos açougues. Havia um chafariz no centro. Era nele que deixavam os dourados e os lambaris. Eu vendia o meu alho aqui fora. Não podia pagar o aluguel…
– Nunca gostei daqui. – interrompeu Corina. – É um lugar grosseiro e sem graça. Dá uma agonia que eu não consigo explicar…
“Ela caiu…” – pensou o rapaz.
– Não é uma coisa só sua. – disse o velho. – Deve-se à história do lugar. Muitas ruas, quase sempre as antigas, guardam algum tipo de sensação. Este ambiente tem muito a dizer e, quase sempre, diz o que quer. Ali na frente, numa encruzilhada, havia um córrego apertado. Era lá que os escravos recém-libertos pegavam água para abastecer os casarões. Passavam sempre por aqui. Seus rastros permanecem no chão.
Gabriel observava as descrições daquele homem e tentava entender o que o levava a contar aquilo. Estava habituado a falar sobre energias com qualquer um, ou havia razão para dar tantos detalhes? Talvez não tivesse convidado a menina por acaso. Era um homem astuto. Devia ter algo a dizer.
Os três caminhavam em direção ao rio, enquanto Amarante recordava as histórias da rua velha e sinuosa. Os fluidos aumentavam à medida que se aproximavam do Centro Operário. Gradativamente, o calçamento de pedras interpostas começava a ser recoberto por uma camada de lama. As descrições que o velho fazia eram idênticas ao que acessava, mas Corina não se dava conta. Ao seu lado, uma casa de pau a pique deixava escapar por uma fresta na parede a instável luz da lamparina. Era tudo rústico e precário. Tinham o mínimo do que a vida exigia.
Na altura do Centro Operário, estampou-se uma mulher negra, rodeada de homens velhos como ela. Parecia estar em transe. Tinha as pupilas para dentro e os braços envergados para trás. Dançava, freneticamente, em torno de um peão de vinte centímetros que girava em velocidade. A mulher exercia magnetismo sobre a peça de madeira, que pendia em sua direção. Quando a rotação do peão reduzia, era chicoteado pela matrona com o vestido ensopado de suor. Gabriel não disse nada, mas teve a nítida sensação de que fora notado por ela. Pessoas de épocas remotas entravam no clube. O som de um saxofone escapava pelas janelas do edifício e misturava-se aos cantos na porta da rua. A viela esgueirava-se em um pântano, a poucos metros do Sapucaí. De lá, aproximavam-se mulheres com volumosas trouxas na cabeça e sacolas de tecido nas mãos.
– Aqui ficavam as casas de rendez-vous! Era a famosa rua do brejo! – continuava o velho, apontando uma fileira de casebres.
O caminho terminava em uma avenida de sapucaias, às margens do rio. Era tudo muito precário. Não havia calçadas ou construções. Os três caminharam por uma trilha de carroças que recolhiam a areia até chegar ao mirante. Perto da corredeira, as energias deram trégua e as projeções cessaram por completo. Sem cerimônia, Amarante despediu-se e seguiu pela ponte de zinco que dava acesso à rua da estação.
– Sujeito bacana, não? – perguntou Gabriel.
– Fiquei encantada com as histórias! Parecia que eu estava lá!
Gabriel sorriu.
(Trecho da obra Conexão Hirsch, de Carlos Romero Carneiro)
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